Publicado em 1 Set. 2020 às 19:38, por Samuel Andrade, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: Síndrome do Vinagre, Festivais de cinema)
Destaques e impressões do último dia da programação em streaming do festival.
A expressão popular "tudo o que é bom acaba depressa" aplica-se muito bem à inspirada decisão do Il Cinema Ritrovato em proporcionar, neste atípico ano de 2020, uma oferta online do seu programa. Subitamente, chegamos ao último dia de festival, assinalado por duas propostas de cinema europeu "sério" e por um conjunto de filmes italianos produzidos no início do século passado, dos quais, hoje em dia, apenas subsistem alguns excertos.
(Os jovens soldados de "Ich war neunzehn", de Konrad Wolf)
Realizado em 1968 por Konrad Wolf, cineasta alemão homenageado este ano pelo Il Cinema Ritrovato, foi possível ver "Ich war neunzehn" ("Eu tinha dezanove anos"), drama passado na Segunda Guerra Mundial e com contornos autobiográficos – o próprio Wolf, aos 17 anos, foi soldado durante o conflito. Nesta história de um militar do Exército Vermelho, durante os dias que antecederam a rendição da Alemanha Nazi, é notória a mensagem pacifista e de tolerância, servida por um filme de cariz quase documental e minimalista – a sua fotografia prima pelo severo contraste do preto e branco, a banda sonora é quase inexistente – no modo como dispõe os vários capítulos do seu argumento.
Com formalismo semelhante, mas oriundo de outra geografia, "Att döda ett barn" (numa tradução à letra, significa algo como "Para matar uma criança"), realizado em 1953 por Gösta Werner, remete para o típico "cinema de austeridade" produzido na Suécia ao longo das décadas de 1950 e 1960. Sem a profundidade psicológica que Ingmar Bergman popularizou, Werner apresenta um exercício de antecipação emocional em torno de uma tragédia que a narração prenuncia nos segundos iniciais do filme. O trabalho de restauro digital a partir de uma cópia em 35mm, concluído pelo Svenska Filminstitutet em 2015, não descurou todos os dilemas morais que o filme mobiliza em apenas dez minutos de metragem.
Nestes últimos dias de Il Cinema Ritrovato, é obrigatório salientar um par de sessões dedicado a filmes incompletos – isto é, a títulos cuja versão integral está considerada perdida –, onde se exibiu, em bobinas conservadas e restauradas pela Cineteca di Bologna, os fragmentos que sobreviveram até aos nossos dias.
(Fotograma de "Idolo infranto", de Emilio Ghione)
Para além do valor histórico, assim como da curiosidade que um título incompleto pode suscitar nos espíritos cinéfilos, este conjunto de filmes remete para o espírito dos arquivos de cinema, entidades que preservam os frágeis vestígios de obras comprometidas pelo tempo e investem na busca das suas versões integrais.
Essa curiosidade ficou ainda mais aguçada pela decisão (quase de génio) do festival em disponibilizar, nesta secção, filmes sobre paixão, crime, infortúnio e castigo. Por outras palavras, e dada a sua condição incompleta, ficamos sem saber quem é inocente, ou culpado, em "Nina la poliziotta" (1920, de Giuseppe Guarino), "Idolo infranto" (1913, de Emilio Ghione) ou "Sansone e la ladra di atleti" (1919, de Armando Mustacchi). Se os títulos e os e autores pouco nos dizem, a sua metragem limitada ilustra, no entanto, a profunda teatralidade e aperfeiçoamento técnico de que o cinema italiano já disponha nos anos de 1910 e 1920.
Em jeito de comentário final, importa realçar as palestras moderadas por técnicos de restauro e responsáveis de cinematecas, que o Il Cinema Ritrovato disponibilizou na sua plataforma de streaming ao longo dos últimos dias. Autênticas aulas de cinema onde se abordaram as ferramentas para a datação de filmes mudos, o restauro passo a passo de clássicos como "O Acossado" ou "Os Inadaptados", as especificidades acerca da preservação de obras em Technicolor, entre outros tópicos –, atividades paralelas do festival que mostraram o importante "trabalho de sapa" empreendido por estas instituições, em prol de continuarmos a observar o cinema feito há muitas décadas.
Até 2021, Il Cinema Ritrovato!