Cartaz de cinema

Il Cinema Ritrovato: os pesadelos do Expressionismo Alemão e as amarguras do Sonho Americano

Publicado em 31 Ago. 2020 às 21:30, por Samuel Andrade, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: Síndrome do Vinagre, Festivais de cinema)

Il Cinema Ritrovato: os pesadelos do Expressionismo Alemão e as amarguras do Sonho Americano

As impressões de um fim de semana dedicado à programação em streaming do festival de cinema restaurado.

Os restauros de títulos menos populares de Expressionismo Alemão e do western americano, considerados como movimentos estéticos fundamentais para a compreensão da história do Cinema, ocuparam no passado fim de semana lugar de destaque no calendário online do Il Cinema Ritrovato.

Das Wachsfigurenkabinett

(Um "museu de cera", tal como representado em "Das Wachsfigurenkabinett")

"Das Wachsfigurenkabinett" (1924, de Leo Birinsky e Paul Leni), filme com singular percurso de conservação – a versão original alemã encontra-se perdida, logo o seu restauro, num trabalho conjunto entre o British Film Institute , a Deutsche Kinemathek e a Cineteca di Bologna, foi assegurado a partir de uma cópia em nitrato de 35mm com intertítulos em inglês –, é obra que nos últimos anos tem adquirido notoriedade como significativo representante da indústria cinematográfica da República de Weimar.

Dividido em três capítulos, que detalham histórias saídas da imaginação do seu protagonista, "Das Wachsfigurenkabinett" (ou "O Gabinete das Figuras de Cera") surge preenchido pelas sombras matizadas e cenários sumptuosos que caracterizaram o Expressionismo Alemão. Repleto de cândido erotismo e peculiar comicidade, o imenso talento do seu elenco – de Emil Jannings e William Dieterle (dois nomes que, posteriormente, dariam cartas em Hollywood), a ilustres "desconhecidos" como Olga Belajeff e Ernst Legal – não fica subjugado ao aparato estético aqui reunido. Caso o exibam por cá (e a Cinemateca Portuguesa já o fez em 2013), é filme a não perder.

Liebling der Götter

(Emil Jannings em "Liebling der Götter")

Também produzido da Alemanha, chegou-nos o curioso e divertido "Liebling der Götter" (1930), de Hanns Schwarz. Inédito em Portugal, e também com Emil Jannings como protagonista, esta comédia musical sobre um tenor famoso e mulherengo, que começa a duvidar dos benefícios de uma vida dedicada ao espetáculo e à adulação das fãs, detém a particularidade de ter sido um dos primeiros títulos a ser gravado no sistema Klangfilm – poucos anos depois, esta patente conheceria representante no nosso país, por intermédio da Companhia Portuguesa de Filmes Sonoros Tobis Klangfilm. Não surpreende, portanto, que o restauro de "Liebling der Götter" (supervisionado, em 2018, pela Friedrich Wilhelm Murnau Foundation e executado nos laboratórios do L'Immagine Ritrovata) tenha incidido na recuperação da sonoplastia de um filme sem pejo em gerar efeitos sonoros para fins humorísticos.

Na produção oriunda do "outro lado do Atlântico", o Il Cinema Ritrovato proporcionou duas experiências que, apesar da distância temporal, convidam à reflexão sobre o conceito do Sonho Americano.

Minha Terra, Meu Sangue

(Susan Hayward e Whitfield Connor, em "Minha Terra, Meu Sangue")

Realizado em 1948 por George Marshall, "Minha Terra, Meu Sangue" (no original, "Tap Roots") é um reencontro com os westerns americanos filmados em "glorioso Technicolor" – e esse será, decerto, o seu principal motivo de interesse hoje em dia. Evidenciando uma visão romantizada de "orgulho sulista" no dealbar da Guerra Civil Americana, e com Boris Karloff no papel de um índio(!) norte-americano, "Minha Terra, Meu Sangue" revela problemáticas semelhantes às que recentemente toldaram "E Tudo o Vento Levou". Contudo, o seu restauro – da responsabilidade da Universal Pictures – é irrepreensível na demonstração do Technicolor enquanto processo mítico de colorização cinematográfica.

California Split

(Elliott Gould e George Segal, um duo de inveterados jogadores de póquer, em "Brincando com a Sorte")

De 1974, e com assinatura de Robert Altman, "Brincando com a Sorte" ("California Split" no original) é digno representante da Nova Hollywood, ou seja, do cinema americano que singrou durante a década de 1970.

Face à aparente inexistência de enredo (embora seja discernível uma consideração pessimista em relação ao american way of life), o filme expõe uma das imagens de marca de Robert Altman: sequências repletas de personagens, onde diálogos ou efeitos sonoros se sobrepõem constantemente, e a atmosfera da realidade apresentada é sempre mais eloquente do que as palavras dos intérpretes. Essa técnica está salientada num inequívoco trabalho de restauro (concluído, em 2020, pela Sony Pictures), que deixa apreciar, paralelamente à sonoplastia de "Brincando com a Sorte", um perfeito exemplo de cinema processado segundo o sistema Metrocolor.