Publicado em 27 Ago. 2020 às 21:16, por Samuel Andrade, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: Síndrome do Vinagre, Festivais de cinema)
Olhar sobre o segundo dia da programação em streaming do festival do cinema restaurado com referências a um Cary Grant pré-código Hays e a uma agradável surpresa italiana dos anos 50.
Ao segundo dia da versão on-line do festival Il Cinema Ritrovato, eis que nos deparamos com duas propostas – num dos casos, uma genuína "(re)descoberta" – que, por datas e contextos geográficos muito distintos, versam um dos temas mais intemporais desde que há ficção narrativa: as peculiaridades, aspirações e os modos de encarar a vida que dividem homens e mulheres.
(Cary Grant e Frances Drake, numa imagem promocional de "Mulheres Tomem Cautela")
De 1934, e realizado por Frank Tuttle – um dos nomes em destaque na presente edição do festival –, "Mulheres Tomem Cautela" (no original, "Ladies Should Listen") é uma curiosa comédia screwball (género popular nas décadas de 1930 e 1940, caracterizado por narrativas de ação dinâmica e histórias sobre namoro, ou casamento), produzida pouco antes da implementação das normas de conduta moral do Código Hays para o cinema norte-americano. Protagonizada por um jovem Cary Grant, coadjuvado pela graciosa Frances Drake, esta trama de românticos desenganos não é apenas capaz de extravasar a mentalidade do seu tempo – pois, aqui, a única personagem "oca" é materializada pelo próprio Grant –, como merece figurar entre os títulos mais representativos (com, por exemplo, "Aconteceu Uma Noite" ou "Duas Feras") daquele período.
Quanto à cópia disponibilizada em streaming, trata-se de mais um impecável trabalho dos estúdios Kino Lorber, designadamente pela integralidade conferida ao contraste de imagem (o "grão", da cópia em 35mm, está perfeitamente preservado) e à sonoplastia original gravada no histórico sistema Vitaphone.
("Donne e soldati", de Luigi Malerba e Antonio Marchi)
A grande descoberta do dia chegou em italiano: "Donne e soldati" (1954), de Luigi Malerba e Antonio Marchi, exibido no contexto da homenagem prestada este ano pelo festival ao ator Marco Ferreri. Praticamente desconhecido do público (basta pesquisar no IMDB, ou no Google para se entender como é filme obscuro), e produzido fora dos grandes estúdios de Roma que, naquela época, imperavam no cinema italiano, "Donne e soldati" é uma deliciosa comédia medieval, ambientada no castelo de um senhor feudal (o próprio Ferreri) mais preocupado em saciar a gula do que no bem-estar da população ao seu serviço, cercado por soldados invasores que revelam maior interesse pelas mulheres ali residentes do que em tomar o local de assalto.
Para além da surpreendente mensagem antibélica (a que não faltam referências à Segunda Guerra Mundial, ou à Guerra Fria), o filme serve, também, de "montra" para o trabalho dos profissionais do laboratório L'Immagine Ritrovata. O restauro apresentado, concluído em 2020 a partir de um negativo do filme em 35mm, potencia a belíssima fotografia a preto e branco de "Donne e soldati", enquanto demonstra, através de algumas "imperfeições" na imagem, como esse trabalho foi executado segundo métodos analógicos de restauro e preservação.
Pelo meio, foi ainda possível observar duas sessões de cariz documental. "Melville, le dernier samouraï", de Cyril Leuthy, sobre a vida e a carreira do realizador francês Jean-Pierre Melville, e o produto do restauro de três curtas-metragens dedicadas a Bolonha, cidade anfitriã do Il Cinema Ritrovato: "Bologna monumentale" (1912) e "Dove Dio cerca casa" (1955), que revelam aspetos típicos e históricos da cidade, e "Guida per camminare all'ombra", realizado por Renzo Renzi em 1954, subordinado aos inúmeros pórticos que decoram as fachadas dos edifícios de Bolonha.