Publicado em 26 Ago. 2020 às 20:10, por Samuel Andrade, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: Síndrome do Vinagre, Festivais de cinema)
Os destaques do primeiro dia da programação em streaming do festival do cinema restaurado.
Começou ontem, 25 de agosto, a edição 2020 do Festival Il Cinema Ritrovato, em ano de Covid-19 com uma versão online e limitada. Apologistas que somos de cinema reencontrado e restaurado, não hesitamos em fazer a subscrição – e as impressões das primeiras horas de festival já demonstraram que não nos vamos arrepender.
(imagem de "Tontolini è triste")
No primeiro dia, partimos à descoberta de dois pequenos filmes italianos, ambos datados da década de 1910 e reveladores de como a "comédia à italiana" existe desde os primórdios da Sétima Arte.
"Tontolini è triste", realizado e protagonizado por Polidor (ator francês de origem transalpina, de nome Ferdinand Guillaume, responsável por mais de uma centena de curtas-metragens cómicas, quase todas consideradas perdidas), onde o Tontolino do título apenas encontra a cura para a "depressão crónica" através de uma sessão de cinematógrafo
"La nuova cameriera è troppo bella" (ou, numa tradução à letra, "A nova criada é muito bela"), comédia burlesca, de realizador desconhecido, sobre uma jovem criada, recém-chegada a uma residência de alta sociedade, por quem todos os homens da casa – desde o velho chefe de família até ao ajudante de cozinha – se apaixonarão.
Nos filmes desta curta sessão, que têm as cópias originais preservadas na Cineteca di Bologna, é notório o respeito pelas marcas do tempo, habituais em película de nitrato, que o restauro apresenta – aliás, é regra de ouro, entre restauradores, que deve ser aplicado o mínimo de manipulação a este género de arquivo. Assim, com a melancolia de Tontolino e as desventuras de uma "bela camareira", podemos observar em detalhe o trabalho de coloração que no início do Século XX se aplicava aos filmes impresso em nitrato, e usufruir de uma experiência estética muito próxima da vivida naquela época.
(Dana Andrews, Joan Crawford e Henry Fonda, em "Entre o Amor e o Pecado")
Num registo totalmente oposto, mas igualmente satisfatório, observamos o restauro levado a cabo em 2016 pelos estúdios Kino Lorber, de "Entre o Amor e o Pecado" (no original, "Daisy Kenyon").
Melodrama com tons de film noir, realizado em 1947 por Otto Preminger, narra o triângulo amoroso formado entre Joan Crawford, Dana Andrews e Henry Fonda – um dos homenageados pela edição de 2020 do Il Cinema Ritrovato, numa secção curiosamente denominada Henry Fonda for President.
Arrasado pela crítica sua contemporânea, é hoje qualificado como filme de culto; um melodrama seco, corajoso em abordar temáticas desconfortáveis (por exemplo, o stress pós-traumático da personagem de Henry Fonda, veterano da Segunda Guerra Mundial) para as plateias da década de 1940 e com desenlace incerto até ao último fotograma.
O restauro de "Entre o Amor e o Pecado", prima pelo modo como manteve intacta, através dos meios modernos ao dispor dos restauradores, a qualidade de uma direção de fotografia rica em sombras – em especial as que cercam as personagens nas sequências de interiores – e em contrastes de imagem que potenciam os conflitos e as relações humanas dispostas pela narrativa. Sendo condição essencial, para um bom restauro fílmico, a absoluta preservação da visão original dos autores e a obediência aos métodos de produção da época, o trabalho da Kino Lorber revela-se absolutamente positivo.