Publicado em 15 Jan. 2024 às 19:48, por Samuel Andrade, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: Síndrome do Vinagre)
Rodado em 35mm, o novo trabalho de Emerald Fennell é um bom argumento a favor de todos os filmes serem produzidos em suporte analógico.
Chamem-me materialista, mas é-me quase impossível conceber uma forma de expressão criativa ou artística sem o seu lado físico, tangível e concreto, e em todas as fases da sua "vida" – conceção, exibição, reprodução e preservação. Por outras palavras - e removendo desta equação as artes digitais - permanece-me irredutível a noção de que o criador necessitará sempre da "matéria-prima" ao alcance das suas mãos: do papel de rascunho, da tela de tecido para espalhar a tinta de óleo, da celulose para filmar ou fotografar.
Sem surpresa para quem acompanha o Síndrome, este pessoal desejo de materialismo – ou "materialidade" – encontra particular ênfase quando nos referimos à Sétima Arte. Por aqui, já muito se explanou sobre a técnica de produção e projeção em suportes analógicos; hoje, centremo-nos na singular e (cada vez mais) rara fruição de um filme rodado em película.
Dos casos mais recentes que chegaram ao nosso "consumo", desde finais do passado mês de dezembro, está "Saltburn", que a plataforma Prime Video disponibiliza na sua grelha.
O mais recente filme de Emerald Fennell (que realizou, em 2020, o provocador "Uma Miúda com Potencial") é um conto satírico de contornos góticos, que divaga sobre alguns dos sentimentos (desejo, obsessão e inveja) e contrastes (preconceito social, privilégio e luta de classes) humanos mais sombrios, "Saltburn" não se revela inebriante pelos temas que arranha, mas sim por uma experiência visual e sensorial como poucas nos dias que correm.
Inevitável e consideravelmente, essa sensação advém da direção de fotografia do sueco Linus Sandgren, que filmou títulos como "La La Land – Melodia de Amor", "Não Olhem Para Cima", ou o videoclip "Who Cares", de Paul McCartney – sempre em analógico.
Recorrendo à variada gama 35mm da Kodak, Sandgren extravasa os traços narrativos de "Saltburn" através de uma fotografia copiosa em textura, idílica (a propriedade dos abastados Catton, banhada pelo sol estival) e dantesca (aquela festa de anos!), com interiores noturnos a lembrar Kubrick em "Barry Lyndon" (1975), ou auroras quases reminescentes de Terrence Malick e do seu "Dias do Paraíso" (1978), com uma paleta de cores entre o impetuoso e a "hipersaturação".
E, agora, chamem-me fanático. Pois, enquanto corriam os créditos finais de "Saltburn", o pensamento reinante foi: o cinema – bom, mediano, ou mau – devia ser mesmo todo filmado em película. É o analógico que faz o cinema ser cinema, que lhe permite ser a arte das salas de projeção e um item maior face aos pixels de monitores caseiros e aos bytes do YouTube.
É evidente que o valor de um filme nunca poderá ser balizado apenas pelas suas especificações técnicas. Contudo, se o cinema é uma arte cuja execução (das interpretações ao formalismo, assim como os significados que pretende realçar) passa pelo diferenciado crivo de espectadores e crítica especializada, então não é exagerado acreditar que a qualidade imagética pode elevar uma obra cinematográfica. Nesta era do "frio digital", a rodagem em material analógico – como se tenta deixar evidente pelo exemplo de "Saltburn" –, por si só, já é um garante de filme acima da média.
Por conseguinte, apenas nutro um lamento: merecíamos todos, ávidos da película, ou não, ver "Saltburn" no grande ecrã. De preferência, numa boa cópia em 35mm.