Publicado em 20 Fev. 2022 às 11:18, por filmSPOT, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: O Espírito da Colmeia, Cinema Europeu)
Entre o final do franquismo e a consolidação da democracia, Espanha passa por inevitáveis convulsões sociais e políticas. Terreno acidentado onde nasce um subgénero cinematográfico apostado em explorar temas como a delinquência juvenil, a toxicodependência, ou a prostituição.
Enterrado o Caudillo em novembro de 1975 e com a proclamação de Juan Carlos como chefe de estado, Espanha entra no período conhecido como Transición Democrática que culminará com a entrada do país na Comunidade Europeia.
Embora marcado pela esperança de evolução para uma sociedade mais desenvolvida e progressista, foi também um período de convulsão social e não sem a sua dose de desencanto. Aparte as questões fratricidas, herdadas de uma guerra traumática, a Transição colocou, frente a frente, a geração que cresceu em ditadura com aquela que devia conduzir o país à vanguarda. Esta última, para lá da utopia da construção de um mundo luminoso, foi uma geração marcada pela exclusão social resultante de altos níveis de desemprego, pela delinquência e pelo advento das drogas na sociedade, fenómenos especialmente marcantes entre os filhos da denominada classe operária.
Esta juventude esvaziada foi cristalizada em tela por uma nova vaga (termo familiar a qualquer cinéfilo) de cineastas, numa estética que se desenvolveu em subgénero e ficaria conhecido pelo sugestivo anglicismo quinqui. Tendo como nomes maiores José Antonio de la Loma e, em especial, o basco Eloy de la Iglesia, o cinema quinqui assumia, numa lógica de produção de baixo custo, um cariz neorrealista no sentido mais Pasoliniano do termo: filmado em cenários reais, nos bairros operários nascidos em redor das grandes cidades (aqui e ali invocando o Ettore Scola do lúmpen romano), protagonizado pelos jovens desses mesmos bairros e genuíno na sua linguagem. De alguma forma panfletário, engagé embora nem sempre esclarecido, o quinqui abordava temas nunca antes pensados quanto mais dispostos em tela no cinema espanhol.
A delinquência juvenil, a toxicodependência ou a prostituição, apresentados como recurso único para a juventude mujique da era da Transición. Tecnicamente pobre, embora não desprovido de interesse visual, o trunfo do quinqui é a sua crueza e a desinibição na hora de revelar um bas-fond de liberdade sexual e adição. Construído por cima de arquétipos mais ou menos caricaturados (a devoção religiosa e o nacionalismo saudosista do guardia civil em "El Pico", por exemplo), a verdade é que dentro dessa estrutura estereotipada as personagens encontram espaço para alguma densidade.
Esta característica é particularmente bem explorada por Eloy De la Iglesia no já referido "El Pico" e, também, em "Colegas". Ambos são protagonizados por José Luis Manzano, figura central do cinema quinqui, o Ninetto Davola de De la Iglesia. Manzano, natural do bairro madrileno de Vallecas, era a representação real das suas personagens. Sem instrução, começou cedo em trabalhos de circunstância. Uma vida de dependência e passagens pela prisão até à sua morte, aos 29 anos, no apartamento do próprio Eloy de la Iglesia.
O cinema quinqui tem um folclore muito próprio no universo cinematográfico espanhol. Aparte as considerações técnicas e as óbvias lacunas dos próprios actores, é um subgénero que se presta à romantização, o que explica o culto a que está votado. E, apesar de olhado de lado pela crítica, acabou a fazer escola. Seguramente que sem o quinqui não teríamos Saura e Almodóvar tal como os conhecemos hoje em dia.
A grande característica do quinqui, para além do retrato particular que fez da sociedade espanhola numa dada época, talvez seja a forma como ilustrou o fosso geracional do pós-franquismo.
Regressemos a "El Pico", onde Eloy De la Iglesia volta à sua Bilbau natal para filmar a história de dois adolescentes, o filho de um comandante da guardia civil e o filho de um político independentista basco. A fim de sustentar a dependência de heroína, à revelia dos progenitores, obviamente, os jovens embarcam em comportamentos problemáticos, para usar um eufemismo. Com esta construção simples de arquétipos, De la Iglesia consegue lançar o isco para o problema das drogas no País Basco do início da década de 80 e, ao mesmo tempo, colocar o foco na transversalidade do problema que atinge os dois lados da trincheira política. Provoca uma dicotomia entre os dois lados, franquista e abertzale, e une-os da forma mais perversa possível.
Há, no entanto, uma segunda dicotomia mais vincada que a política - a separação de realidade entre adolescentes e adultos, projectada no alheamento destes últimos. O confronto entre essas realidades é o paradigma do quinqui. Destapar a manta e revelar uma Espanha que, em tempos que se queriam de redenção, fervilhava afinal de desencanto e angústia.