Publicado em 16 Jul. 2020 às 11:57, por Samuel Andrade, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: Síndrome do Vinagre, Cinema Europeu)
Das estreias em sala esta semana, o Síndrome do Vinagre destaca "O Que Arde", realizado por Oliver Laxe, quase inteiramente rodado em película de 16mm.
Das estreias em sala esta semana, o Síndrome do Vinagre destaca "O Que Arde", realizado por Oliver Laxe, quase inteiramente rodado em película de 16mm.
A história do regresso de Amador Coro, condenado por provocar um incêndio florestal, à aldeia onde nasceu, nas montanhas da Galiza, e onde reside a mãe, motivaram Oliver Laxe a optar por filmar em formato analógico – um suporte, aliás, que o realizador tem privilegiado ao longo da sua filmografia.
O trabalho visual é uma das principais qualidades de "O Que Arde": desde a beleza natural da província galega do Lugo, às cores ameaçadoras do incêndio que irá devastar aquela região. Um filme que demonstra a versatilidade estética, a resistência e a vitalidade da película de 16mm através das várias estações do ano e dos diversos contextos geográficos apresentados.
Para melhor conhecermos as motivações e circunstâncias da sua filmagem, conversamos com Oliver Laxe, numa entrevista onde o realizador fala das metodologias de produção, da sua escolha habitual pelos suportes analógicos e dos afetos que a película transmite no espectador.
Em "O Que Arde", há uma abordagem visual ao cinema documental (as rotinas diárias de mãe e filho, o labor e atividades rurais, o trabalho dos bombeiros) que parece misturar facto e ficção, mas também surgem algumas sequências quase oníricas (por exemplo, a primeira sequência do abate dos eucaliptos, ou os próprios incêndios florestais). Estes elementos foram decisivos para filmar em 16mm?
A primeira sequência não foi filmada em 16mm, lamentavelmente. Por questões orçamentais, de tempo e de segurança, optamos por a filmar com drones e em digital. Também tivemos de respeitar legislação, a qual te obriga a manter uma distância de cerca de cinquenta metros em redor das máquinas. Assim, isso implicou termos de filmar com um drone, que era um elemento que não nos assustava e com o qual já estava pessoalmente habituado.
Fizemos vários testes, tentamos acoplar a um drone bastante grande uma câmara AAton Minima que possui 60 metros de carretel. Contudo, a Kodak já não fabrica esse tipo de carretel e, por isso, íamos ter problemas com a revelação da película. Ainda tentamos automatizar essa câmara de 16mm, mas tínhamos poucos dias de rodagem. Por isso, recorremos a um drone com câmara e outro para a iluminação. Tal foi bastante complexo, visto que tivemos de "cinescopar" estas imagens. Não estou contente com o resultado, creio que poderia ter ficado muito melhor; existe alguma irregularidade na luz, por vezes vê-se muito pouco, mas como essas imagens só surgem no início do filme, sendo o restante filmado em 16mm, julgo que a transição entre formatos foi menos impercetível, e é sempre melhor quando isso acontece.
A forma como a natureza é filmada neste filme (as paisagens verdes, as montanhas durante os meses de inverno, a floresta queimada) é, simultaneamente, deslumbrante e sombria. Acha que esta versatilidade é inerente à própria qualidade da película? Ou houve planeamento específico, anterior à rodagem, para se obter essas imagens?
Sim, concordo com a opinião de que a película tem muita versatilidade. Este seria um tema longo e profundo, dava para falarmos muito sobre a comparação entre analógico e digital. Por exemplo, o incêndio – e ao contrário da primeira sequência em digital, onde as luzes dos focos dos bulldozers, registadas em 4K numa câmara aparentemente muito boa, não tinham qualquer gradação de cor, eram luzes totalmente "queimadas", daí termos gasto orçamento em efeitos especiais para lhes dar alguma matização – foi filmado em película, e as cores parecem saídas de uma pintura de Rubens. Além disso, não tivemos nenhum problema técnico com a câmara, mesmo filmando em condições extremas físicas e de calor.
Quanto a planeamento, sempre filmei em película, não é difícil filmar nesse formato e, ao contrário do que se diz, não representa nenhum sacrifício financeiro. Aliás, isto é algo que defendo sempre junto de todos os meus produtores – não há discussão possível a esse respeito. Somos feitos de matéria orgânica, e a película afeta-nos de outra maneira; a imagem digital é composta de quadrados, e nós não somos quadrados, somos "redondos", orgânicos. A imagem analógica tem o poder de nos impressionar fisicamente e ao nosso próprio metabolismo, a imagem analógica é muito mais poderosa do que a digital. De alguma forma, sou um realizador que procura sondar a relação misteriosa que existe entre a imagem cinematográfica e o metabolismo humano.
Nos materiais de imprensa do filme, é mencionado que, durante a pré-produção, havia o receio de que a película de 16mm poderia não aguentar o calor durante as cenas dos incêndios florestais, de que o celuloide poderia derreter na câmara. Tal demonstra como a película é um formato frágil. Nesse sentido, houve algum contratempo, ou situação inesperada, durante as filmagens?
Não houve nenhum problema, apenas enfrentamos a certeza de fazer um filme como ninguém experimentara antes, nunca se tinha filmado no meio de um incêndio florestal; tínhamos algumas dúvidas, mas que não nos deixaram parados, encontrámos sempre uma solução para tudo. Basicamente, muitos dos problemas que podem ocorrer com o celuloide são mitos. No fundo, se queres rodar em película, podes fazê-lo de qualquer maneira. Outra coisa é que se está habituado a escolher sempre o caminho mais fácil, não é? Pessoalmente, não gosto dos caminhos mais fáceis.
Que câmaras, lentes e formatos de película foram utilizados para "O Que Arde"?
A câmara foi uma Arriflex 416, julgo que as lentes foram da Zeiss. A película foi do tipo 250 [nota: Kodak Vision3 250D], pois procuramos obter menos grão na imagem. Apenas houve um problema, com todas as imagens que captamos durante o inverno. Devido a um problema de revelação no laboratório, tivemos de fazer alguma "redução de ruído", de modo a diminuir o grão da imagem. Gosto sempre que o grão seja suave e orgânico, que não seja "ruidoso".
Esta não é a primeira vez que opta por rodar em película. Da sua experiência, prefere trabalhar com a película? E quais são os principais desafios de filmar nesse formato?
É sabido que há mais imediatismo com o digital. Mas, quando filmamos em película, também é possível combinar as duas tecnologias. Com o digital, podemos analisar logo o material que filmamos... Mas não ponho as coisas numa balança e não penso nas dificuldades, assumo-as e vou em sentido direto ao que me mais gosto. Portanto, não penso muito nisso. Mas, efetivamente, julgo que existe uma energia, uma adrenalina e uma concentração acrescidas quando estás atrás da câmara que não consegues com o digital, e essa energia acaba sempre por afetar aquilo que filmas.
Numa era em que a grande maioria da produção cinematográfica é filmada em digital, tem-se assistido ao ressurgimento de títulos rodados em 35mm e 16mm. Na sua opinião, acredita que os formatos analógicos têm futuro nos próximos anos?
Sim. No último festival de Cannes haviam, julgo, dez títulos rodados em película. Estava o de Tarantino, o nosso filme, estava "O Farol"... havia várias produções em película. Por isso, haverá sempre quem compre o chamado vinho em "caixa de cartão" e quem compre vinho de qualidade, de excelência. A vida sempre será assim, suponho.
Oliver Laxe nasceu em 1982 e cresceu entre França, Espanha e Marrocos. Realizou duas longas-metragens galardoadas no Festival de Cinema de Cannes: "Todos Vós Sodes Capitáns" (Prémio FIPRESCI, Quinzena dos Realizadores, em 2010) e "Mimosas" (Grande Prémio da Semana da Crítica, em 2016). "O Que Arde" é a sua terceira longa-metragem, foi filmada na Galiza, terra dos seus antepassados.
"O Que Arde" estreia esta quinta-feira, 16 de julho 2020, nas salas de cinema portuguesas.