Publicado em 5 Dez. 2021 às 10:40, por Pedro Sesinando, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: O Espírito da Colmeia, Festivais de cinema)
Segunda crónica sobre os filmes em destaque na edição 2021 do festival portuense.
A Competição Internacional do PortoPostDoc consagrou "The Last Shelter" de Ousmane Samassekou, documentarista maliano que se instalou na cidade de Gao, às portas do deserto do Sahel, para retratar o quotidiano da denominada "Casa dos Migrantes", o último porto seguro de milhares de migrantes africanos a caminho do sonho europeu. Os relatos pungentes dos hóspedes da casa tornam o filme cruel, mas esta necessária falta de misericórdia perante o espectador não impede Samassekou de preservar o olhar humanista acima de tudo, sem paternalismos. Humanista porque não se retrai perante o drama, sério porque dá um rosto aos protagonistas, não os reduzindo a caricaturas de mártir para romantizar um dos mais mal tratados temas do nosso tempo.
Fora do lote dos premiados também encontramos propostas interessantes. De Engeli Broberg, "Gabi, Between ages 8 and 13", acompanha durante cinco anos a vida de Gabriella, Gabi, uma criança em conflito com a envolvente social suportada na distinção de género entre menino e menina. Gabi luta pelo direito de viver para lá dessa distinção, superando alguns desafios e autocensurando-se noutros ao mesmo tempo que lida com a mudança de um corpo que não controla. O dilema de procurar aceitação entre pares e ser fiel a si mesma está muito presente e é bem captado por Broberg, com a inestimável colaboração de Gabi, uma criança que se nos apresenta simples de compreender. Talvez o grande problema do filme esteja na forma em como as situações quotidianas parecem obedecer a um guião que, felizmente, é complementado com a espontaneidade de Gabi.
Da Argentina chega "Esquirlas", de Natalia Gayaralde, cujo título se pode traduzir para "Estilhaços". Talvez o filme mais forte de toda a competição, por originalidade e interesse histórico, com toda a subjectividade que uma declaração destas possa ter. O filme existe por acaso, ou melhor, por um acaso. Em 1995 Natalia Garayalde, então com 12 anos, regista em vídeo a explosão da fábrica militar de armamento de Rio Tercero, província de Córdoba, Argentina. Através de uma captação amadora temos o registo de um desastre que destruiu praticamente toda a povoação, fazendo sete mortos e vários feridos e tendo evidente repercussão nacional. A posterior investigação das autoridades judiciárias argentinas destaparia que a explosão foi provocada de forma a ocultar um negócio de tráfico de armas dirigido precisamente a partir da fábrica militar. Garayalde constrói esta história a partir da edição de imagens do seu arquivo pessoal, levando-nos através da narração à nostalgia da sua infância e vida familiar e de como o atentado impactou a harmonia de uma família muito activa na comunidade. O entusiasmo infantil da Natalia criança, por estar a viver despreocupadamente um evento mediático, e o contraponto do tom pesaroso da Natalia adulta, narradora, é o embalo perfeito para uma história que culmina com uma bonita homenagem ao pai e irmã mais velha de Natalia, ambos acometidos por doença grave e também eles vítimas tardias da tragédia.