Publicado em 27 Nov. 2022 às 20:04, por Pedro Sesinando, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: O Espírito da Colmeia, Festivais de cinema, Cinema Europeu)
O documentário de Claudia Müller foi um dos filmes a concurso na edição deste ano do festival portuense.
Nascida na Áustria no virar da primeira metade do século XX, Elfriede Jelinek construiu uma obra literária destinada a agitar as águas da sociedade austríaca do pós-guerra, das suas idiossincrasias resultantes de uma comunidade marcada pelo peso da moral religiosa e pela ocupação nazi.
No seu documentário biográfico "Die Sprache von der Leine lassen" (algo como "The Language Unleashed"), Claudia Müller propõe-se a seguir cronologicamente o percurso de Jelinek para remeter a Áustria à catarse de se confrontar com o seu passado recente.
O carácter de Jelinek, satírico mais que sarcástico, manifesta-se desde a infância, desde logo na forma como escolhe a literatura como acto primário de transgressão, por oposição à música, arte a que se dedicava por imposição materna.
Após um início de sucesso enquanto poeta, Jelinek dedica-se à prosa, assumindo um corte estético relativamente à literatura dominante de então, colocando os protagonistas à mercê das circunstâncias e das vicissitudes do entorno social, negando o heroísmo do actor que controla o próprio destino.
Esta particularidade, aliada à crueza e sarcasmo da sua prosa, torna-a numa artista tão inovadora quanto desconfortável. Curta era a distância entre a autora desconfortável e a autora maldita, estatuto que conquistou ao denunciar alguns dos maiores ídolos da cena artística vienense como colaboracionistas durante a ocupação nazi.
Esta vertente iconoclasta, numa autora já muito verbal na denúncia da normalização da violência sexual machista no seio da família tradicional, tornou-a numa figura controversa na cultura e sociedade austríacas.
A certa altura, durante o documentário, Elfriede manifesta esta mágoa, de ter sido considerada uma voz polémica e polarizada, o que significava que o seu discurso era, à partida, recebido com reservas.
Não deixa de ser surpreendente que Elfriede refira este ressentimento, ela que sempre pareceu tão à vontade na contramão.
Elfriede Jelinek venceu o prémio Nobel da Literatura em 2004.