Publicado em 3 Jun. 2023 às 21:16, por Pedro Sesinando, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: O Espírito da Colmeia)
Ancorado nos labirintos emocionais das suas personagens femininas, o díptico de João Canijo revela-se desigual com a solidez de uma das partes ofuscada pelas fragilidades da outra.
O primeiro instinto ao depararmo-nos com "Mal Viver" e "Viver Mal" é pensarmos em ambos os filmes como tendo uma ordem formal ou pelo menos sugerida. Depois de vistos não será demasiado arriscado considerar que tal questão pode gerar preferências, mas não é necessariamente decisiva, o que não significa que entre ambas as obras não existam diferenças relevantes.
No seguimento do que já propusera em "Fátima" e, porque não, em "Sangue do meu Sangue", João Canijo entrega neste díptico o ponto de vista às personagens femininas, fazendo-o mais uma vez de forma particularmente cruel, encurralando as suas protagonistas, embora desta vez o faça num hotel familiar e não numa viagem de peregrinação como havia feito no supracitado "Fátima".
E este cerco não é apenas literal - as mulheres de "Mal Viver" estão confinadas aos limites físicos impostos pelo hotel e às responsabilidades profissionais inerentes, construindo-se assim a metáfora perfeita para o labirinto emocional em que se encontram.
A referência explícita a "Mal Viver" justifica-se porque, na verdade, está aqui um filme inteiro, que não precisa de um siamês para brilhar.
Toda a dinâmica Bergmaniana e as implicações emocionais das relações familiares abusivas estão representadas em plenitude nas personagens desenvolvidas por Anabela Moreira, Rita Blanco e Madalena Almeida.
Além das sólidas interpretações e do trabalho dos diálogos, há uma particular pungência na entrega do drama familiar, tão invocativo de Strindberg, influência assumida, mas também de Ibsen, até na forma como a ausência da figura masculina é referida ao ponto da mitificação. Um apontamento que serve tanto como arma de arremesso nas discussões familiares como para expor fragilidades no íntimo das personagens.
Uma das questões mais interessantes que "Mal Viver" levanta é a forma como joga com os moralismos, fazendo deambular entre o desdém e a empatia o nosso julgamento acerca de cada personagem, se é que sentimos necessidade de escolher vilões e heróis nesta história. Afinal é um filme com gente real, o que torna as coisas mais complexas para o subconsciente que rege a nossa bússola moral.
Mantendo o foco nas relações familiares, com tudo o que é intuído do passado das personagens e confinando-as à claustrofobia do hotel, Canijo cria as condições ideais para o conflito, para que nenhuma fragilidade ou mania fique por desvendar. Não resta às personagens outra saída que não seja o confronto, ou improvisar um plano de fuga.
É exactamente onde "Mal Viver" acerta que "Viver Mal" tropeça. Canijo explora bem a ideia dos vasos comunicantes, sobrepondo diálogos sussurrados, conversas cruzadas entre um e outro filme, aproveitando as coincidências temporais e espaciais, mas tal não chega para resgatar "Viver Mal" da armadilha de arquétipos sucessivos e caricaturas de matriarcas abusivas em que se meteu.
"Viver Mal" sofre pelo ancoramento emocional que a densidade de "Mal Viver" provoca, e as inevitáveis comparações não são lisonjeiras para o primeiro, evidenciando a diferença entre uma obra inteira que se aguenta no próprio pé, para outra, de tal forma ofuscada pelo irmão maior, que se vê reduzida a um exercício de voyeurismo.