Publicado em 4 Jun. 2024 às 18:41, por Pedro Sesinando, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: O Espírito da Colmeia, Festivais de cinema, Cinema Europeu)
Exibido em Veneza, o filme mais recente do cineasta francês de "Saint Laurent" e "Apollonide" integrou a programação do festival lisboeta antes de, finalmente, estrear nas salas nacionais.
A premissa que Bertrand Bonello propõe em "A Besta" gera, desde logo, desconfiança. Uma distopia futurista em que os humanos se submetem a um processo de purificação do ADN com o intuito de apaziguar as emoções excessivas e assim garantir paz de espírito, processo esse que faz com que os sujeitos da purificação acabem a viver as suas vidas anteriores para limpar os traumas acumulados.
Ultrapassada a reticência inicial, fica a convicção de que Bertrand Bonello tinha coisas para dizer e que, partindo do romance de Henry James, "A Fera na Selva", divergiu para um ensaio sobre o subconsciente da condição humana. Embora inicialmente Bonello pareça querer postular sobre como o escapismo emocional de ansiar uma existência sem traumas pode levar a uma existência sem rasgo – a frase de Gabrielle (Léa Seydoux), na sua encarnação de pianista clássica sobre uma peça de Schönberg ser "muito inventiva, mas é difícil encontrar o sentimento" marca esse tom inicial do filme que, no entanto, evolui para a exploração do medo enquanto sentimento paralisante, et pourtant, decisor na vida emocional de um ser humano.
O arranque da narrativa do filme decalca-se da do livro, aparte a inversão do género dos protagonistas, e constrói-se em cima do fio condutor emocional que o romance sugere – a angústia sentida por Gabrielle sustentada por uma premonição latente relativa a um evento catastrófico que esta acredita que em breve se abaterá sobre si.
Para além do tempo presente, Bonello apresenta três diferentes épocas narrativas, com apenas duas constantes: a "fera na selva" que ameaça Gabrielle, isto é, o sentimento de que algo tenebroso está para acontecer, e a presença de Louis, interpretado por George Mackay, a quem Gabrielle confessa o mau presságio que carrega.
É através da dinâmica entre as duas personagens que Bonello consegue que o prenúncio de tragédia paire sobre todo o filme, algo transmitido não apenas através do comportamento nem sempre decifrável que Louis exibe durante as várias eras que ultrapassa, mas também pela forma como projeta em Gabrielle uma torrente de emoções que derivam tanto do amor como do medo, em partes iguais. Conforme a era, Louis apresenta-se em diferentes manifestações da angústia que habita em Gabrielle, percorrendo esta, na sua relação com Louis, um amplo espectro emocional, do medo da perda ao medo de ser morta.
Abram-se os parêntesis para dar o devido reconhecimento a Léa Seydoux, atriz que consegue transmitir a ideia de absoluto terror contido, ao mesmo tempo que conserva o mistério suficiente para que não ousemos adivinhar o que possa estar a pensar. Fechados os parêntesis, pese embora a desarrumação narrativa e cronológica que Bonello sugere, o que não é necessariamente um problema, e o seu flirt com o universo de Cronenberg, a verdade é que a mensagem que o cineasta francês pretende passar parece unívoca.
Bonello fá-lo fugindo aos cânones estruturais que o cinema sci-fi costuma aplicar, agarrando-se mais à estética onírica e dissertando, por um lado, sobre a tese cansada da relação entre o advento da tecnologia e a solidão humana, e outra que teima em manter-se relevante e que o Cinema vem abordando nas suas diferentes épocas: o passado como refúgio para preservar as emoções que garantem a nossa humanidade.