Publicado em 7 Mar. 2021 às 18:18, por Pedro Sesinando, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: O Espírito da Colmeia, Cinema Europeu)
Estreia da rubrica "O Espírito da Colmeia", um espaço de reflexão sobre o cinema que se pretende mais aprofundado, sem a pressão do imediatismo e distante das rotinas.
Entre tudo o que se pode retirar da obra de Michael Haneke, um dos pontos mais recorrentes é a forma como o cineasta alemão nos coloca, enquanto espectadores, em situações desconfortáveis, mas suficientemente familiares, que não nos permitem afastar em consciência. E se esteticamente Haneke consegue manter uma certa linearidade, por exemplo, no ritmo e na gestão dos silêncios, encontrar outros paralelismos nos seus filmes pode não ser, à partida, tão óbvio.
Num dos seus títulos mais prestigiados, "O Laço Branco", de 2009, Haneke decide, nas suas próprias palavras, "examinar o tema das condições que conduzem ao terrorismo". A acção desenrola-se na Alemanha rural do início do século XX, no período que antecede a primeira Grande Guerra, numa aldeia que é palco de estranhos acontecimentos. Tudo nos é apresentado, não como sendo totalmente factual, mas tal como é recordado pelo narrador.
Em "Caché", de 2005, Haneke usa os mesmos elementos de mistério, desta vez em tempo presente, para contar a história de um homem que procura descobrir quem o está a acossar e qual a razão. Tal como em "O Laço Branco", Haneke acena-nos com um enigma, aguça-nos os sentidos para que, tal como num policial, desconfiemos das personagens e procuremos um culpado, apenas para depois nos confrontar com o nosso próprio subconsciente.
Podemos entender, até sem grande risco porque foi referido pelo próprio realizador, que "Caché" trata da culpa e da forma como a processamos individualmente. Não será um grande salto de fé pensar que, com este filme, Haneke queria expor igualmente a culpa colectiva, se considerarmos que o pano de fundo é o Massacre de Paris de 1961, onde, em plena guerra pela independência da Argélia, duzentos argelinos perderam a vida, muitos afogados no Sena, às mãos da Polícia de Paris comandada por Maurice Papon. Numa interpretação totalmente livre, a personagem de Daniel Auteuil pode representar a própria França e a inabilidade de se olhar ao espelho e lidar com esta página negra da sua história recente.
Em "O Laço Branco", Haneke parece estar com menos rodeios e foca-se no passado da Alemanha, postulando o moralismo protestante como uma das causas da ascensão do fascismo. Haneke iliba-se, de alguma forma, deste determinismo ao utilizar um narrador que assume estar a contar a história tal como se recorda e não necessariamente como aconteceu, mas a sua visão fica registada. Talvez o maior factor de distinção na abordagem sobre a culpa é que, se em "O Laço Branco" há um dissecar do passado, em "Caché" há um desenterrar do passado. As causas vs as consequências.
Toda esta análise pode ser considerada matéria de especulação que os filmes nos suscitam, e é provavelmente essa a única segurança que podemos ter ao ver um filme de Michael Haneke: não vamos ter respostas simples a cair-nos no colo e levamos sempre mais para pensar do que tínhamos antes de nos dispormos em frente ao ecrã.
Quando questionado sobre porque se recusa, de alguma forma, a dar uma solução aos thrillers que propõe, Haneke parece ter as ideias claras: "É por isso que o cinema de género tem tanto sucesso. Pode agitar as pessoas durante duas horas, mas estão calmas quando deixam a sala. Considerando o estado do mundo, acho este acordo (nda: entre cineasta e público) muito irresponsável".