Publicado em 1 Abr. 2022 às 20:26, por Pedro Sesinando, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: O Espírito da Colmeia, Cinema Europeu)
Para além das mais de 30 longas-metragens há um curioso lado televisivo a descobrir no cineasta alemão.
Nascido escassos dias após a rendição da Alemanha, no princípio do fim da Segunda Guerra Mundial, Rainer Werner Fassbinder teve uma carreira tão curta quanto prolífica. De facto, considerando a longa metragem "O Amor é mais frio do que a morte", de 1969, como o início da sua obra cinematográfica, e até 1982, ano da sua morte, Fassbinder deixou mais de trinta títulos entre longas metragens e séries de televisão, não entrando nesta contabilidade o trabalho como actor em filmes próprios ou de outros realizadores.
Sobejamente conhecido pelo trabalho para cinema, em especial durante os anos 70, com títulos como as "Lágrimas Amargas de Petra von Kant", ou "O Desespero de Veronika Voss", há uma vertente de produção para televisão que, sendo menos conhecida e acessível, também merece particular atenção.
Uma dessas obras foi a adaptação do romance de Alfred Döblin, "Berlin, Alexanderplatz", talvez a maior obsessão do já de si obstinado Fassbinder que via o protagonista, Franz Biberkopf, como uma espécie de seu alter ego literário. Biberkopf é um homem que tenta regressar à vida após sete anos preso por ter assassinado a namorada, insistindo para si mesmo que está num franco período de regeneração. As circunstâncias desviam-no de tal percurso, ou disso nos quer convencer Franz, narrador para além de protagonista.
Considerando esta ambiguidade latente da personagem bem como o ambiente em que a acção se movimenta, o sórdido bas-fond berlinense, fica mais fácil entender o fascínio de um polemista militante como era Rainer Werner Fassbinder.
"Berlin, Alexanderplatz" chegou às salas de estar da Alemanha ocidental em 1980, já Fassbinder tinha um elevado domínio sobre o seu ofício. Mas, embora o mais ambicioso, não foi o seu primeiro projecto para televisão. Antes, em 1973, adaptou o romance de Daniel F. Galouye, "Simulacron-3", sob o título "Welt am Draht – O Mundo no Arame".
De certa forma, "O Mundo no Arame" é um intruso no catálogo cinematográfico de Fassbinder. Desde logo, por ser um filme de ficção científica, com uma narrativa bastante típica deste género. Uma equipa de cientistas cria uma simulação para recriar padrões comportamentais da sociedade do futuro, não por previsão, mas através da observação de uma comunidade artificial. Os membros da comunidade são marionetas baseadas em pessoas reais.
É inevitável pensar no "Blade Runner" de Ridley Scott (que sairia dez anos depois) e, também por essa aproximação intuitiva, a um filme do universo de Hollywood, se torna mais forte a estranheza em relacionar este título com a restante obra de Fassbinder.
No entanto, a nível estético, Fassbinder mantém-se fiel ao seu estilo. Apresenta-nos um mundo de espelhos (no sentido literal) e ambivalências e mesmo a representação por vezes excessivamente teatral e robótica tão particular nos seus actores, parece encaixar muito bem neste universo. Para além disso, há uma óbvia componente existencialista em "O Mundo no Arame" que é comum a outros trabalhos de Fassbinder.
Em "Berlin, Alexanderplatz", o protagonista Franz Biberkopf culpa a sociedade pela sua incapacidade de levar uma vida moralmente aceitável. De alguma forma, Franz é manipulado por forças maiores às quais não se consegue opor, tal como o são as marionetas de "O Mundo no Arame". A diferença é que Franz é consciente da manipulação e usa-a como expiação dos seus pecados. Podemos entender as marionetas como uma representação da problemática da busca da identidade e, personificada em Franz, essa problemática resolvida visto que Franz tem o pretexto ideal para ser quem é e como é.
O protagonista de "O Mundo no Arame", Fred Stiller, é uma antítese de Franz Biberkopf. No entanto, também ele carrega as angústias mais pessoas do próprio Fassbinder. Stiller é dono de uma verdade que coloca em causa a ordem social e é perseguido pelos agentes da normalidade.
Se há algo em que vida e obra de Fassbinder se confundem é precisamente nesta recusa em ceder à formatação. A passagem de Rainer Werner Fassbinder pela vida e arte foi tão fugaz como voraz e, aparte filias e fobias que ainda possa gerar, continua a ser um cineasta cuja obra, mesmo a mais obscura, mantém a capacidade de surpreender.