Publicado em 8 Jul. 2021 às 10:28, por Pedro Sesinando, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: O Espírito da Colmeia, Cinema Europeu)
Nos seus filmes, o turco Nuri Bilge Ceylan, conduz o espectador numa viagem pelas vertentes fundamentais do cinema, sempre distante dos facilitismos do cinema de cariz mais mercantil, mas sem nunca esquecer a necessidade fundamental de envolver e maravilhar o espectador.
O plano fixa a paisagem rural de colinas agrestes, pontuada apenas por uma árvore que domina a moldura e cujo ligeiro balanço é a única prova de movimento oferecida ao espectador. O céu limpo e avermelhado diz-nos que estamos em plena golden hour, tão cara ao ofício da fotografia. A quietude é interrompida por um ruído de motor e por tímidos focos de luz que irrompem pelos trilhos, serpenteando pelas colinas, aproximando-se da frente do plano enquanto a câmara se mantém inamovível.
Assim inicia Nuri Bilge Ceylan a acção de "Bir Zamanlar Anadolu'da" (Era uma vez na Anatólia), a sua obra maior, de 2012.
Não necessitaríamos de conhecer a biografia de Ceylan para adivinhar uma devoção do cineasta turco pela fotografia, tal a importância que a cinematografia assume na sua obra. A cena inicial anteriormente descrita de "Bir Zamanlar Anadolu'da" é disso bom exemplo.
Nascido em Istanbul, Nuri Bilge Ceylan cresceu na província de Çannakale regressando à cidade do Bósforo para completar o liceu e iniciar os estudos universitários. A sua carreira, no que a longas metragens diz respeito, começa no final dos anos 90 com a informalmente denominada "trilogia provincial" em que Ceylan filma a terra onde cresceu, dirigindo actores amadores, incluindo alguns do seu círculo familiar. Nesta fase, Ceylan assume praticamente todas as vertentes técnicas necessárias à composição dos filmes: argumento, cinematografia, edição e, claro, realização.
O último filme deste tríptico, "Uzak", de 2002 seria o seu primeiro momento de consagração. O filme saiu de Cannes com os dois protagonistas agraciados, dividindo o prémio de melhor actor.
O ano de 2008 marca, com "Üç maymun" (em português, "Três macacos"), o início da colaboração com o director de fotografia Gökhan Tiryaki, figura que está inevitavelmente ligada a uma nova fase na carreira de Ceylan. Tiryaki é não só o responsável pela fotografia do já referido "Bir Zamanlar Anadolu"da", mas também de "Kiş Yukusu" ("Sono de Inverno", 2014) e "Ahlat Ağacı" ("A Pereira Brava", 2018).
Não havendo aqui matéria para considerar estas obras como uma trilogia há de facto semelhanças entre todas elas ou, dito de outra forma, é no processo de desenho e consequente resultado final destes três filmes que Ceylan matura um estilo que o torna único.
Em "Kiş Yukusu" (2014), adaptação do próprio realizador a partir de um conto de Antón Chekhov, Ceylan conta a história de um actor reformado que gere um hotel herdado na remota Capadócia onde vive com a irmã e a jovem esposa. A paisagem inóspita, juntamente com a agressividade do inverno contribui para reforçar uma certa ideia de cativeiro que, sendo mais evidente nas personagens femininas, também está bastante presente no próprio protagonista, Aydin. Para além da Chékhoviana intimidade familiar, Ceylan apresenta-nos uma narrativa paralela que se pode adjectivar como a parte Dostoievskiana do filme, à falta de melhor termo. Aydin enquanto proprietário, a recolher rendas com o fiel capataz e confrontado com a violência da pobreza e da sua condição de opressor nesta relação de forças. O filme, numa encenação quase teatral, é composto por diálogos longos embalados pela frustração latente nas personagens que progridem lentamente até um estado de amargura e ressentimento.
Ceylan apela aos instintos primários do espectador, fazendo balançar a empatia entre cada um dos protagonistas. Este aspecto está especialmente focado em Aydin, em redor do qual gravitam as restantes personagens e em relação a quem aparentam estar numa situação de dependência material e emocional. Não há, no entanto, uma intenção de condenar ou expiar Aydin que, sendo o mais resignado, é também o mais só e, consequentemente, o mais reactivo a essa solidão, reagindo como um animal ferido.
Não resisto a considerar Aydin como uma projecção de Sinan, o protagonista de "Ahlat Ağacı"(2018), com a diferença de que este, sendo mais jovem, vive as suas angústias de forma mais impaciente. Sinan, um jovem escritor que regressa a casa dos pais, é apresentado como um jovem sensível e um prodígio em potência cuja projecção é truncada por um pai egoísta e irresponsável que hipoteca o bem-estar da família pelo vício do jogo. Embora inicialmente entendamos Sinan como vítima do contexto familiar, não demoramos a ganhar-lhe antipatia, pela sua arrogância, por uma soberba infantil que vemos, por exemplo, no Llewyn Davis dos irmãos Coen. O processo inverso acontece com o pai de Sinan. De pobre diabo subjugado pela própria fraqueza somos conduzidos a um homem que ainda conserva a sua dignidade. Que admite as suas falhas sem se escusar a responsabilidades. Este processo de regeneração do pai na mente do espectador é reforçado pela mãe, talvez a única personagem pela qual mantemos a consideração plena durante toda a narrativa.
Mais uma vez, tal como em "Kiş Yukusu", somos levados a saltar entre emoções por, inevitavelmente, estarmos predispostos a apegar-nos às personagens. Ceylan, nesse aspecto, usa o espectador embora sem o trair ou infantilizar. Em suma, esconde a mão durante grande parte do tempo que lhe dedicamos, leva-nos a escolher preferidos até sermos confrontados com as suas fraquezas.
A negação desse preto no branco faz-se de uma forma gradual e complexa, o que nos impede de catalogar os protagonistas sequer como anti-heróis. Talvez seja uma comparação preguiçosa, mas podemos encontrar alguns paralelos na abordagem de Ceylan com a do iraniano Asghar Farhadi, sendo que Farhadi parte de uma situação de harmonia que é subitamente abalada por um evento inesperado. Ceylan parece abdicar desta forma abrupta de desmoronamento. A história chega-nos já sob uma aura de paz podre à qual os personagens parecem estar resignados. A dar suporte a toda esta complexidade emocional estão a cinematografia e o som, sempre muito cuidados e fundamentais para que Ceylan consiga imergir as personagens num ambiente que influi no seu estado de espírito.
Tal como "Kiş Yukusu" perderia bastante da sua carga dramática se Ceylan não conseguisse filmar a rudeza do inverno e a agressividade da paisagem da Capadócia como o fez, também "Ahlat Ağacı" ou "Bir Zamanlar Anadolu'da" seriam obras bastante menores se, por exemplo, Ceylan não captasse o vento daquela forma tão sublime.
E depois há a mestria que Nuri Bilge Ceylan aplica na mise-en-scéne propriamente dita e como conduz o espectador.
Veja-se o exemplo do já referido "Bir Zamanlar Anadolu'da". A acção inicial decorre na Anatólia rural onde uma comitiva formada por polícias, militares, um médico e um procurador está à procura de um cadáver, prova de crime, com a colaboração de um dos suspeitos. Durante a primeira hora somos levados pelas luzes dos carros que se movem pelas colinas da Turquia interior (numa, talvez deliberada, invocação de outro cineasta iraniano, Abbas Kiarostami, e do seu "O Sabor da Cereja") aguardando o desfecho do mistério, a resolução do crime, eventualmente o proverbial plot-twist pelo meio.
Após uma altercação entre o chefe da polícia e o suspeito, Ceylan mostra o diálogo posterior entre o procurador e o próprio chefe da polícia, o primeiro tentando acalmar o último, enquanto ambos discutem as frustrações próprias de um caso estagnado e discutem futuras abordagens. Eis que o plano abandona os dois homens e concentra-se longamente numa maçã que rebola pela encosta, cai num regato e é conduzida pela corrente até encalhar numa amálgama de pedras que se ergue do curso de água. Deliberadamente Ceylan desvia-nos o olhar, faz-nos concentrar noutro plano, numa acção que, embora tão casual e mundana, canibaliza a nossa atenção. O diálogo das personagens e a investigação caem num plano secundário, deixam de ter importância. E é então que compreendemos, por fim, que não estamos num policial.