Publicado em 22 Nov. 2021 às 18:07, por Pedro Sesinando, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: O Espírito da Colmeia, Cinema Europeu)
Onde se recordam as vulnerabilidades de outra protagonista da obra dos cineastas belgas e se vão buscar pontos de contacto com Ken Loach.
Salta à vista em ""Dois Dias, Uma Noite" (Deux Jours, Une Nuit), filme de 2014 dos irmãos Jean-Luc e Pierre Dardenne, quando comparado com a restante obra dos cineastas belgas, a relação da narrativa com uma contemporaneidade concreta por oposição a uma certa intemporalidade que se podia assumir nos dramas pessoais de "Le fils" ou "L'enfant", para nomear alguns dos títulos mais paradigmáticos. Neste caso em particular, a crise económica de 2008 é o pano de fundo e motivador da realidade social que os Dardenne pretendem retratar.
O filme acompanha Sandra, interpretada por Marion Cotillard, uma jovem mãe que, após baixa médica, regressa ao trabalho numa pequena fábrica da cintura industrial de Liége. Sandra vê que o seu lugar foi considerado redundante já que a gestão decidiu diluir os turnos pelas horas extraordinárias dos restantes colegas. Tem então o fim de semana, dois dias e uma noite, precisamente, para convencer esses colegas a abdicar do bónus e recuperar o seu posto de trabalho.
A premissa já deixaria antever que "Dois Dias, Uma Noite" seria, de alguma forma, um filme que nos traz os Dardenne na sua vertente mais Loachiana, e onde reconhecemos em Sandra alguns traços da Rosetta (interpretada por Émilie Dequenne) do filme epónimo de 1999. Há, no entanto, diferenças que se revelam significativas, se olharmos às circunstâncias em que se encontram ambas as protagonistas.
Rosetta vive à margem, sem estrutura familiar e sem outra perspectiva que não o de estar no sítio certo para apanhar as migalhas que possam cair. O universo de Sandra é totalmente distinto. Apesar da depressão que causou a baixa médica, tem suporte familiar e está integrada socialmente. Não é acossada pela sociedade, ao contrário de Rosetta.
Não havendo diferenças na empatia que possamos sentir por Sandra ou Rosetta, é mais fácil projectarmo-nos em Sandra. Os Dardenne apontam o dedo, a crise galgou terreno e atinge para lá dos mesmos de sempre. A malha da vulnerabilidade alargou. E essa diferença de realidade entre as protagonistas marca a essência de cada um dos filmes.
A vulnerabilidade de Rosetta leva-a a actos individualistas por puro instinto de sobrevivência. Não que a julguemos, visto que durante todo o filme estivemos imersos no seu ponto de vista. Pelo contrário, "Dois Dias, Uma Noite" parece tratar, acima de tudo, de solidariedade.
A proposta dos Dardenne passa por retirar aos colegas de Sandra qualquer traço de vilania, dando-nos a hipótese de nos colocarmos dos dois lados da barricada. Para mudar as opiniões, Sandra tem de bater porta a porta, mudar pontos de vista, confirmar aliados. Tem de se tornar uma presença incómoda, perturbar a paz familiar daqueles a quem precisa de convencer. Tem de atrapalhar o sábado, como diria um certo bardo carioca.
Sentimos o constrangimento de Sandra da mesma forma que conhecemos a realidade e as razões dos seus colegas, o que, inevitavelmente, os humaniza. O que resta, e o que sai denunciado, é a perversão de um sistema que prospera à custa dos conflitos humanos que gera. Perversão essa que fecha a sua quadratura se percebermos que o final feliz para Sandra implicaria o regresso ao mesmo posto que a levou ao esgotamento. Uma interpretação que decerto Loach não desdenharia.