Publicado em 10 Jul. 2023 às 22:15, por Pedro Sesinando, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: O Espírito da Colmeia)
Resumo dos primeiros dois dias na 31.ª edição do Festival de Curtas-Metragens de Vila do Conde.
Após um dia inaugural marcado pela estreia de "20 000 espécies de abelhas", primeira longa metragem da cineasta basca Estíbaliz Urresola Solaguren, o segundo dia do Curtas mantém o registo no cinema do país vizinho, com destaque para duas curtas produzidas por dois antigos alunos do Instituto de Investigaciones y Experiencias Cinematográficas, o IIEC, a primeira escola de cinema espanhola que irrompeu em pleno período franquista e que seria encerrada já após a transição para a democracia.
Ambos os filmes, dos posteriormente consagrados Carlos Saura e Antonio Drove Shaw, foram concebidos como trabalhos práticos dos cineastas enquanto alunos do IIEC e mantêm um diálogo interessante, embora distem dez anos entre si, de olhar interpretativo sobre a forma como as instituições, oficiais ou oficiosas, exercem um papel opressivo sobre os mais frágeis sujeitos do tecido social.
A curta de Saura, "La Tarde del Domingo" (1957), muito evocativa de De Sica e do neorrealismo italiano na sua vertente mais reivindicativa, situa-nos na Madrid à entrada dos anos 60, pela mão de Clara, jovem doméstica, vinda da aldeia para servir em casa de uma família pequeno-burguesa. A tarde de domingo, os bailes na associação e o passeio no parque do Retiro são os únicos momentos em que Clara não está a servir os patrões.
O retrato familiar feito por Saura, tão deliberadamente caricatural, é o momento mais subversivo do filme – as idas à missa, a patroa mesquinha, o jornal ABC, de linha conservadora, religiosamente disposto para acompanhar o pequeno almoço do chefe de família, a filha indulgente e o filho de tendências progressistas, o único a empatizar com a situação de Clara, ainda que sem grande preocupação em alterar a situação. Embora sem grande complexidade dramática ou narrativa, Saura consegue um documento que retrata a dinâmica social da época, associada às migrações do campo para as grandes urbes, tão familiares também ao Portugal do Estado Novo.
Se o tema é a subversão, a curta de Antonio Drove, "La Caza de Brujas" (1967) vai um pouco mais além que a de Saura. Centra a narrativa num colégio de rapazes gerido por uma ordem religiosa, retratando os mecanismos de poder associados à educação católica particularmente rígida durante o regime de Franco e abordando a instrumentalização da culpa e a promoção da denúncia enquanto ferramentas de repressão.
Pontuada por uma trilha sonora angustiante, Drove sugere sempre mais do que o que mostra, retira relevância aos actos, supostamente ímpios, praticados pelas crianças, para dar ênfase à ideia de que a culpa é um mecanismo de controlo em si e que não depende da verdade.
A Competição Internacional de curtas metragens prosseguiu domingo com duas sessões das quais se destacam os trabalhos de Guillermo García López, "Aunque es de noche", uma história assente no bairro de La Cañada Real, nos arredores de Madrid, que sobrevive sem luz há mais de três anos e "O meu Vizinho Abdi", do holandês Douwe Dijkstra, que nos leva a reminiscir sobre uma Mogadíscio em guerra pela mão do seu vizinho somali Abdi, que chegou aos Países Baixos como refugiado.
A curta de Dijkstra tem uma forma particular de conjugar uma leveza na narração, na maneira quase lúdica como apresenta as encenações da violência que Abdi presenciou enquanto criança, fugindo à sua vitimização e evitando assim uma estética de filme de caridade.
Nota final ainda para Estíbaliz Urresola Solaguren, que para além das honras de abertura e de pertencer ao júri da Competição Internacional, teve ontem também direito a uma sessão retrospectiva sobre os seus trabalhos anteriores, um deles, "Cuerdas", o mais recente, que já tinha estado em competição na última edição do Curtas.
Deste tríptico apresentando na secção New Voices, "Adri" de 2012, "Polvo Somos" de 2020 e o já citado "Cuerdas", conseguimos observar a evolução de Urresola Solaguren que, embora assentando o foco no drama familiar, vai progressivamente levantando a cabeça e abrindo espaço ao mundo exterior que se torna mais um factor de entropia e inquietação das personagens.