Publicado em 4 Abr. 2021 às 18:21, por Pedro Sesinando, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: O Espírito da Colmeia, Cinema Europeu)
Na crónica de abril do seu espaço "O Espírito da Colmeia", Pedro Sesinando abre uma janela sobre o cinema espanhol para recordar Luís Garcia Berlanga, um dos seus nomes maiores, mas menos conhecidos.
O cinema em Espanha afecta-se das mesmas idiossincrasias e contradições que poderíamos utilizar para descrever o próprio país. Uma vista de olhos superficial pela história da sétima arte em Espanha leva-nos a um cinema que em muito se enquadra na gaveta do cinema de autor, mas nem por isso fora do mainstream, de que Pedro Almodóvar é exemplo singular.
Leva-nos também a um cinema de "indústria", com nomes familiares como Alejandro Amenábar, ou Álex de la Iglesia. Outro que surge regularmente nesta enumeração e permanece um dos mais venerados entre cinéfilos é o de Victor Erice, apesar de a mais óbvia referência quando se entra neste name-dropping ser a de Luís Buñuel, cujo legado é de facto incomparável aos seus colegas de ofício. Há, no entanto, um nome que costuma ficar de fora e que é relativamente desconhecido fora de Espanha, o de Luís Garcia Berlanga. Muito tem sido proposto sobre as razões que levaram um cineasta tão influente para as gerações subsequentes de realizadores a estar votado a tal anonimidade para o público além-fronteiras, mas a intriga permanece.
Pedro Almodóvar, que considera todo o Cinema espanhol tal como o conhecemos uma derivação de Berlanga e Buñuel, sugere que a falta de reconhecimento internacional do realizador se deve ao estilo particular de encenação de Berlanga em que há um excesso de intervenções verbais (Almodóvar usa o termo "verborreia") e de diálogos, ou meras interpelações, que se sobrepõem continuamente. Sequências em que várias personagens estão em constante despique, em conversas paralelas e sobrepostas são bastante comuns na obra de Berlanga. Em suma, um pesadelo para a legendagem e consequente compreensão do auditório. A tese de Almodóvar vai ao encontro daquelas que apontam a Berlanga uma falta de universalidade ou, para dizê-lo de outra forma, demasiada "espanholidade" na sua obra.
Luis Garcia Berlanga nasceu em Valencia em 1921. Cursou cinema em Madrid onde conheceu Juan Antonio Bardem. Esta parceria marcaria os primeiros títulos da sua carreira, "Esa Pareja Feliz", em 1951 (que só estrearia em 1953) e, especialmente, "Bienvenido Mr. Marshall", em 1952, filme que marca um antes e depois no cinema espanhol. Neste último, Berlanga centra a narrativa numa aldeia andaluza no pós-Segunda Grande Guerra que se prepara para a visita de diplomatas norte-americanos a fim de colher os frutos do Plano Marshall. Todo o vilarejo se agrega, das forças vivas aos habitantes mais humildes, numa reunião de esforços com o intuito de impressionar os visitantes, tornando a aldeia num folclórico postal da Espanha rural, do flamenco e das touradas. O filme, após passar a censura franquista, estreou no Callao de Madrid com relativo sucesso e chegou a Cannes de onde saiu premiado.
Um importante marco na carreira de Berlanga virá em 1961 quando, com Plácido, inicia a parceria com Rafael Azcona, que se tornaria no mais conceituado dos argumentistas espanhóis. O ponto alto desta parceria surgiria, no entanto, dois anos mais tarde com "El Verdugo". Aqui, Berlanga conta a história de um carrasco da prisão de Madrid, responsável pelas execuções por garrote vil, um método especialmente cruel utilizado em Espanha até bem entrados os anos 70. O protagonista, magistralmente interpretado por José Isbert, vem retratado como um homem simples com quem o público facilmente empatiza, apesar das macabras tarefas a que o ofício o obriga.
Embora em tom de comédia negra, o filme é uma evidente crítica à pena de morte e, por atacado, ao regime franquista. O próprio título remete para uma das alcunhas do Generalíssimo. Ainda assim, tal como em "Bienvenido Mr. Marshall", o filme passou incólume na censura, habilidade para a qual Berlanga parecia estar especialmente talhado e a que não serão alheias as técnicas de dissimulação a que o realizador se presta, deliberadamente ou não.
Os filmes de Berlanga são, antes de tudo, comédias de costumes, caricaturas mais ou menos exageradas de um povo com tudo o que tem de bom e de mau, sem exaltações nem paternalismos. Desconstruindo estas primeiras camadas, descobre-se uma intenção de crítica à sociedade expondo a realidade ao seu absurdo sem ceder à hiperbolização.
Regressando à ideia de que o cinema de Berlanga é demasiado espanhol para ser entendido fora de Espanha - como tese é interessante e legítima, mas por quanto tempo deveremos considerá-la válida? A resposta nunca será objectiva, mas entendo que o cinema de Berlanga tem uma transversalidade suficiente para ser admirado fora da época e da geografia onde foi criado. Prova é a descendência que deixou e ainda vai deixando no cinema espanhol, da qual talvez a genial comédia surrealista "Amanece, que no es poco", de José Luis Cuerda, seja o mais paradigmático exemplo.
A verdade é que o cinema de Berlanga continua bem vivo em Espanha e não há razão para que não seja descoberto fora das suas fronteiras. Que não sobre nenhum pretexto para deixarmos de parte uma das obras cinematográficas mais carismáticas do século XX.