Publicado em 20 Jan. 2024 às 18:23, por Pedro Sesinando, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: O Espírito da Colmeia, Cinema Europeu)
O realizador turco Nuri Bilge Ceylan volta a escolher um protagonista afetado por defeitos de carácter, perseguido por um sentimento de cerco que lhe tolda os comportamentos.
É nota corrente no cinema de Nuri Bilge Ceylan a figura do protagonista revelar características de antagonista, manifestadas sobretudo em comportamentos narcísicos e numa complacência que o leva a atribuir-se uma eloquência de anti-herói. Assim se manifestava a personagem de Sinan em "A Pereira Brava", ou de Aydın em "Sono de Inverno", e assim se comporta Samet, protagonista de "As Ervas Secas", um professor de desenho colocado numa aldeia perdida no interior da Turquia.
A introdução de Samet é, no num primeiro momento, digna de admiração – tanto pela situação de professor deslocado para a Anatólia profunda enterrada em palmos de neve e a partilhar uma casa modesta para cumprir o nobre desígnio de levar instrução aos meios menos privilegiados, como pela forma como parece integrado na pequena comunidade que lhe presta uma reverência que advém da sua condição de educador.
Samet não tarda, no entanto, em revelar comportamentos classistas e prepotentes, sobretudo com os elementos mais vulneráveis com os quais se cruza - os alunos - e a manifestar uma clara tendência para a manipulação, catalisada por circunstâncias que Ceylan lança à medida que a narrativa avança e que destapam o lado sombrio da personagem.
Há pouca margem para considerarmos Samet algo mais que um ser humano desprovido de escrúpulos, movido por egoísmo e por uma necessidade de ser admirado para lá do mero respeito, não obstante, revele o seu lado agressivo apenas quando acossado, como se nele despertasse um sentido de sobrevivência.
De resto, voltando ao conjunto da obra de Ceylan, reparamos que a ideia de cerco paira constantemente sobre as personagens ("Sono de Inverno" é o exemplo óbvio), manifestando-se de forma mais ou menos subtil, mas talvez nunca tão literalmente como em "As Ervas Secas".
Seja pelo problema disciplinar em que se vê envolvido devido ao comportamento impróprio que teve para com uma aluna, como pelas próprias circunstâncias geográficas em que vive, Samet é um homem sitiado. Imerso na boa conta que tem de si, considera este estado de sítio uma injustiça circunstancial, que condescendentemente atribui ao atraso civilizacional das pessoas que o rodeiam, personalizando essa injustiça em Kenan, o seu companheiro de quarto.
Esta confiança em si mesmo é abalada quando Nuray, uma professora que se torna amiga dos dois companheiros de casa – e que revela uma preferência por Kenan - denuncia a inércia de Samet perante o mundo e de como este se refugia num tédio condescendente para evitar ser confrontado com as suas próprias limitações.
O facto de Nuray ter regressado à região depois de um longo período na cidade, leva Samet a assumir uma afinidade que de facto não existe. Embora ainda condicionada por um tradicionalismo inato, Nuray é corajosa e idealista e não receia a subversão como resposta à injustiça – o espelho moral de Samet.
Como é timbre em Ceylan, o realizador mostra-se hábil em filmar a sugestão, escusando-se a atar todas as pontas que desatou. A presença de Nuray, seguramente a sua personagem feminina mais forte, é a resposta à hubris de Samet, mostrando-lhe a forma que este tem de contornar o cerco e abrir-se à redenção. Resta saber se Samet não estará já, irremediavelmente, perdido no seu próprio labirinto.