Publicado em 20 Fev. 2023 às 19:25, por Pedro Sesinando, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: O Espírito da Colmeia)
A primeira obra da britânica Charlotte Wells confia na economia narrativa e na honestidade das personagens para mostrar a trágica dualidade que obscurece a relação entre um pai e a sua filha.
Após ser considerado o melhor filme de 2022 para a insuspeita "Sight & Sound" e, cruzando a fronteira para o mainstream mediático com a nomeação de Paul Mescal para o Óscar de melhor actor, "Aftersun", longa metragem de estreia da escocesa Charlotte Wells, parece conseguir triunfar também em sala, facto que se assinala com especial agrado visto tratar-se de uma obra que parecia ter tudo para não sobreviver em auditório para lá dos festivais de Cinema.
É verdade que já muito se escreveu sobre "Aftersun", o que, confesso, me fez rejeitar inicialmente a ideia de o fazer. No entanto, já que estou em maré de revelações, o fulgor da obra e o impacto emocional que teve fez com que o filme se alojasse no meu subconsciente tempo suficiente para que não o pudesse ignorar.
"Aftersun" parte de um exercício de memória de uma filha em relação a um jovem pai e às férias que ambos partilharam num resort da Turquia quando Sophie, a filha, tinha 11 anos.
Daqui resulta a primeira escolha estética de Wells, certeira tal como as seguintes - a ausência de glamour das personagens e a vulgaridade dos locais por onde pairam, numa sequência de dias sonolentos em que a monotonia dos gestos e dos eventos de alguma forma se entranha até estarmos cativos daquela relação entre pai e filha.
Esta economia narrativa, invocativa de Chantal Akerman, diria, entrelaça perfeitamente com os vários planos alternativos que Wells nos sugere sem os distinguir entre si: os eventos tal como Sophie os recorda, agora na idade adulta, as cenas em que Callum, o pai, está sozinho e aquelas em que Sophie reconstrói o passado através dos vídeos caseiros gravados durante as férias.
O filme deambula entre o pouco que nos diz e aquilo que nos sugere, nunca cedendo à tentação de apresentar uma sequência de episódios ou flashbacks marcantes para criar uma imagem definitiva sobre a relação de Sophie e Callum. E aqui surpreende a maturidade de Charlotte Wells na gestão dos espaços que deixa por preencher, em como filma os traços necessários para construir simultaneamente uma forte relação de afecto e uma barreira invisível entre pai e filha que deriva do estado psicológico de Callum.
Não arriscamos demasiado ao pensar que é aqui que o filme quer chegar, que este mergulho no íntimo das memórias de Sophie é um olhar sobre a doença mental e sobre uma fase do luto em que se lida com a ausência de alguém que não se conseguiu salvar, recuando, tal como no conto de Hansel e Gretel, pelo caminho das pedras, à procura daquele momento de uma redenção que se revelará necessariamente utópica.
Neste carácter porventura pessimista do filme reside a sua maior honestidade – a forma como não aborda a doença mental de forma determinística, quer nas causas, quer nas consequências.
Não há uma fórmula mágica para a fuga e é neste sentido que o filme parece caminhar, pelas ondas de um marasmo ameaçador, até à cena em que as vozes isoladas de Freddie Mercury e David Bowie a debitar os versos finais de "Under Pressure" destapam o verdadeiro terror que assola Sophie.
O filme não terminará sem que Wells nos apresente um dos mais impressionantes planos finais de que tenho memória, deixando desta vez muito pouco espaço à intuição. É o derradeiro golpe. Se queríamos sair ilesos não devíamos ter entrado.