Cartaz de cinema

A Rapariga da Mala (Valerio Zurlini, 1961)

Publicado em 17 Set. 2022 às 17:35, por Pedro Sesinando, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: O Espírito da Colmeia, Cinema Europeu)

A Rapariga da Mala (Valerio Zurlini, 1961)

Mestre do cinema italiano do pós-guerra, menos conhecido do que outros contemporâneos, Zurlini assina um exercício desconcertante que confronta inocência e crueldade.

Aida é feita de pequenas mortes. Sucessivas pancadas, embora suaves, que lhe roubam pedaços de uma inocência que, por necessidade de sobrevivência, teima em reconstruir. Regenera-se ao ponto de se anular, caminha pela vida feito um paradoxo de dormência e persistência. Em partes iguais. Não é movida apenas pelo prosaísmo de ser grande a cantar ou de se olhar ao espelho numa casa de banho forrada a azulejos negros. Flutua pelo baixo-fundo de oportunistas e teddy boys com uma dignidade aristocrata.

Numa das suas mortes, Aida encontra Lorenzo, uma criatura imberbe, feita de tédio dos pés à cabeça. Paira por palacetes percorrendo os seus corredores de ombros caídos e mãos nos bolsos. Um diletante sem arte ou musa a quem se entregar. Até ao dia em que esbarra em Aida, depois de a saber abandonada pelo próprio irmão, entrando num transe complacente que se transforma num fascínio juvenil, o mais violento de todos, afinal, no que a fascínios diz respeito.

Aida aceita Lorenzo, com a ingenuidade regenerada de quem se crê fénix capaz de suportar o tombo da traição mais uma vez. Lorenzo, entusiasmado pelo romantismo da transgressão, comete assim o seu primeiro ato de rebeldia. Num assomo clandestino abre-lhe as portas do palácio, mostra-lhe os aposentos reais e observa-a, cá de baixo, no descer de escadas mais impressionante que o Cinema já ofereceu.

Ao som de Verdi, Aida desce os degraus renascentistas como se já o tivesse feito numa encarnação anterior e aquelas escadas lhe pertencessem. Lorenzo levita, transita do complacente entusiasmo juvenil ao mais doloroso platonismo. Quando Aida acaba de descer, todo o rosto de Lorenzo é transtorno. Verdi já não soa e Aida já não sorri. Onde vemos um fauno apaixonado, Aida contempla pela primeira vez a possibilidade de que Lorenzo seja um homem como os outros. Capaz de se apaixonar e de matar. E é aí que entramos num limbo, que se revelará fictício porque não resistiríamos se não fosse, de que Lorenzo ou Aida poderão ser, em simultâneo, lobo e cordeiro.

Claudia Cardinale é Aida e Jacques Perrin é Lorenzo. A realização é de Valerio Zurlini. O filme é "La Ragazza com la Valigia" (A Rapariga da Mala), de 1961, um exercício desconcertante do cineasta italiano, que confronta a ideia de inocência representada pela relação de fábula entre Lorenzo e Aida, com a crueldade do mundo exterior, o inferno que são os outros, representado pelo mundo do espectáculo num dos seus níveis mais primitivos.

É Zurlini num ambiente moraviano, com uma estética que o contemporâneo Antonioni não desdenharia, embora Claudia Cardinale seja a antítese do laconismo de Monica Vitti. Longe ainda do cinismo que levará a cena com "La Prima Notte di Quiete", é, no entanto, um filme fundamental para perceber a evolução da obra de Zurlini até terrenos mais cinzentos.