Publicado em 19 Mar. 2022 às 20:51, por António Quintas, em Notícias de televisão e séries (Temas: Trailers, Primeiro olhar)
O criador de "The Wire" regressa às origens com uma nova minissérie que aborda um caso de corrupção policial.
Passaram 20 anos sobre a estreia de "The Wire" e David Simon continua a bater no tema da corrupção e dos desvios das autoridades, uma chamada de atenção que continua tão necessária como antes. Regressa também à sua Baltimore para contar uma história com base no livro "We Own This City", de Justin Fenton (tal como Simon, um antigo repórter criminal do Baltimore Sun), sobre a "Gun Trace Task Force", uma unidade especial da polícia cujo objetivo era tirar armas e drogas das ruas da cidade.
Em seis episódios, a série relata a ascensão e queda da unidade, criada em 2015, numa altura de agitação civil após a morte de um afroamericano em circunstâncias suspeitas enquanto estava sob custódia policial. Examina a corrupção e o colapso moral que se abateu sobre a cidade americana e aponta o dedo às políticas de criminalização do uso de drogas e detenção em massa. Em última análise, explica como essa repressão levou à progressiva militarização da polícia e a mais violações aos direitos dos cidadãos.
A "Gun Trace Task Force" foi extinta em 2017, após uma investigação do FBI ter provado que os elementos da equipa montaram esquemas de extorsão e roubo que visavam traficantes de drogas e pessoas inocentes.
Na escrita do guião, David Simon voltou a contar com George Pelecanos, o escritor de livros policiais com quem já trabalhara em "The Wire", "Treme" e "The Deuce". Reinaldo Marcus Green, acabado de assinar "King Richard: Para Além do Jogo", realizou os seis episódios.
A tentação de transferir a clássica teoria do auteur do cinema para a televisão é grande, uma espécie de legitimação da "qualidade" que se tenta afirmar, mas esbarra num conjunto de argumentos sólidos. Desde logo a natureza do meio, a maior industrialização do processo, a serialização da narrativa e o processo de criação e produção. Tudo bastante mais repartido e impessoal. Se alguém sai do anonimato é o criador, o argumentista, ou, mais recentemente, a figura do showrunner, espécie de capataz sisudo que gere o projeto. Ao contrário do que se passa no cinema, em regra, o realizador de ficção televisiva pouco mais é do que um tarefeiro.
Mesmo do lado dos supervisores criativos, poucos são os que cumprem mínimos que permitam equacionar alguma relação com o autorismo sem provocar sorrisos. Shonda Rhimes, a mais notável e bem paga das showrunners é mais gestora industrial do que criadora. Idem com Greg Berlanti, ou mesmo Ryan Murphy.
O exercício pouco mais é do que um paralelismo infantil e inútil, mas se quisermos mesmo ver uma figura de autor em televisão, se insistirmos na ideia de que nela devem existir figuras com valores artísticos, linhas estéticas e narrativas coerentes, então o primeiro nome a referir será o de David Simon.
O ponto de partida é "Homicide", série policial nascida do primeiro livro de Simon que acompanha a divisão de homicídios numa esquadra de Baltimore. Daí, parte para "The Corner", crónica da vida de uma família pobre entre os mercados de droga a céu aberto dos bairros sociais da cidade, espécie de ensaio geral do que seria "The Wire", um abrangente retrato de Baltimore, onde cada temporada espeta o dedo em feridas diferentes: a polícia, as drogas, a escola, os sindicatos, os políticos, a imprensa, ninguém é poupado.
Simon deriva para longe do seu ambiente em "Generation Kill", adaptação de material de terceiros, relato desapaixonado e não raras vezes satírico, do funcionamento do exército norte-americano durante a invasão do Iraque.
Regressa aos dramas locais em "Treme" para mostrar a vida dos músicos de Nova Orleães após o desastre do furacão Katrina e olha para a luta da população de Yonkers, arrabaldes de Nova Iorque, que deseja manter vivos os projetos de habitação social em "Show Me a Hero". Daí passa às mutações pelas quais a Grande Maçã passou durante os anos 70, com os olhares sem filtro sobre a prostituição e a pornografia de "The Deuce".
Em 2020, incursão ao exterior do seu universo para adaptar "The Plot Against America", um círculo completado com este novo "We Own This City".
Pelas séries de Simon cruzam-se temas comuns - pobreza, corrupção, violência e ineficácia da polícia - e geografias - a cidade, seja ela Baltimore, ou Nova Iorque. Repetem-se também caras. Melissa Leo, John Seda, Khandi Alexander, Clarke Peters, Corey Parker Robinson, Don Harvey, Delaney Williams e, sobretudo, Jon Bernthal, são nomes que surgem com frequência nos trabalhos do criador de "The Wire".
E, claro, há um tom próximo do cidadão comum, um realismo que pode surgir das formas mais estranhas - como o famoso diálogo minimalista entre os dois detetives que inspecionam a cena de um crime, na primeira temporada de "The Wire".
Sim, David Simon é o que de mais parecido há com um auteur, no reino sofrido da televisão atual.
"We Own This City" estreia na HBO Max a 25 de abril.
Para mais informações, consulte a página de estreias TV.