Publicado em 20 Jul. 2024 às 20:13, por Pedro Sesinando, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: O Espírito da Colmeia, Festivais de cinema)
Um velho mestre relojoeiro leva o espectador a uma época que "ansiava por vingança".
Como é que a história de um velho relojoeiro da baixa de Manhattan evolui para o episódio em que o mundo toma conhecimento dos pogroms na Ucrânia durante a guerra civil que se seguiu à queda do Império Russo?
A resposta não é óbvia, mas é por este caminho que nos leva Nate Lavey no seu brilhante "Very Gentle Work", curta que o realizador nova–iorquino trouxe até Vila do Conde. Com uma narração lenta pontuada por imagens atuais de uma Nova Iorque mundana, Lavey apresenta-nos Morris Palatka, precisamente o tal mestre relojoeiro, conhecedor de uma porção mais subterrânea da história de Manhattan que vive para lá do folclore habitualmente atribuído à cidade.
Como um guia turístico, Morris conduz o narrador, Lavey, pela sua rota habitual de passeio, evitando os sítios óbvios e parando em sítios, à partida insignificantes, mas que se revelam locais de vários atentados bombistas contra edifícios institucionais que tiveram lugar durante a extensão do século XX em Nova Iorque.
Através do fascínio deambulante de Palatka, Lavey conduz-nos por um folclore urbano que se esconde atrás de um manto histriónico de luzes e movimento, confirmando a ideia de que há muitas formas de contar a história de uma cidade, ou, por outra, que uma cidade não se encerra numa só história.
O filme assume também uma dimensão moral, para lá da antropológica, projetada na figura de Palatka, cujo fascínio por esta forma de violência militante o faz viver no dilema constante entre o fascínio pelas convicções e a angústia pelas consequências humanas.
A narração sugere um Palatka esmagado desde há muito pelo peso dos tempos em que cresceu e com um agudo sentido de mundo e de tempo - citando o próprio : "Não vivemos apenas as nossas vidas, carregamos também os anseios da nossa época. E a minha época ansiava por vingança".
Na busca por pacificação, quando abdicava da sua rota habitual, Palatka visitava frequentemente o "Center for Jewish History", fascinado pela figura de Sholom Schwartzbard, também ele um relojoeiro nascido em Odessa no século XIX. Poeta e revolucionário, Schwartzbard, combateu o Exército Branco durante a Guerra Civil e testemunhou os pogroms, exilando-se em Viena e mais tarde em Paris. Seria precisamente na capital francesa, em 1926, à saída de uma livraria no Quartier Latin, que Schwartzbard executaria Simon Petlyura, antigo comandante do Exército Popular Ucraniano e responsável pela execução de milhares de judeus.
O posterior julgamento foi uma sensação à época, cujo mediatismo a defesa de Schwartzbard aproveitou para, complementando com uma quantidade considerável de provas documentais, fazer discursar inúmeras testemunhas dos pogroms. A defesa resultou, o mundo ganhou consciência e, surpreendentemente, Schwartzbard foi absolvido.
Tal como Marc Chagall o retratou, também Palatka pensava em Schwartzbard como um anjo vingativo e justiceiro, e, acima de tudo, como um símbolo dos tempos em que Palatka ainda entendia o seu lugar no mundo, um derradeiro refúgio de apaziguamento da consciência para alguém a quem não restam senão anti-heróis escondidos sob uma amálgama de betão e néon.