Publicado em 16 Apr. 2025 às 16:36, por Pedro Sesinando, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: O Espírito da Colmeia)
Maura Delpero retrata o impacto distante da Segunda Guerra Mundial numa aldeia dos Alpes italianos revelando tensões familiares, dilemas morais e o peso da autoridade patriarcal.
"É justo comprar discos em tempo de guerra?", comenta Adele Graziadei para o marido Cesare, acentuando a preocupação que sente por ter de racionar a comida que dá aos filhos do casal.
Esta frase, entre outras intuições que sugere sobre a dinâmica familiar dos Graziadei, é apenas uma das formas com que Maura Delpero faz sentir o impacto da Segunda Guerra Mundial na pequena aldeia dos alpes trentinos onde decorre a narrativa de "Vermiglio", filme que pede emprestado o título ao nome da citada aldeia.
De facto, a guerra entende-se como uma realidade fisicamente distante, mas invariavelmente presente, através de folhetins radiofónicos, dos zumbidos longínquos da aviação alemã, das cartas que chegam da frente de batalha, dos filhos que não escrevem. Está presente, sobretudo, na expressão vazia dos dois soldados que a comunidade esconde da remota possibilidade de serem recapturados pelas tropas alemãs.
Por aqui arranca a ação de "Vermiglio", a partir do impacto da presença dos desertores no quotidiano da aldeia, levando-a a sentir a proximidade da guerra e a ver-se obrigada a debater os dilemas de albergar fugitivos e tomar uma posição sobre o conflito, numa altura em que a Itália acabava de se libertar da esfera de influência alemã.
Delpero utiliza este evento como um pretexto para mergulhar na aldeia, levando o filme ao ritmo compassado da vida na comunidade e capturando ao detalhe o bucolismo da paisagem dos Alpes italianos, enquanto mantém a guerra como um espectro distante para se poder dedicar à história da família Graziadei, encabeçada por Adele e Cesare, este último mestre-escola de crianças e adultos, autoridade moral e consciência política da aldeia, papel que lhe é unanimemente reconhecido por toda a comunidade e que este assume não sem um orgulho velado.
De facto, apesar de inicialmente conduzida pela relação entre a filha mais velha dos Graziadei, Lucia, e um dos refugiados, Pietro, a narrativa retorna invariavelmente à órbita do patriarca, em redor do qual gravitam as demais personagens. Cesare é uma personagem contraditória, conhecedor do ofício do campo e aficionado de música clássica, cujos discos faz questão de partilhar com os filhos.
Move-se harmoniosamente entre a intelectualidade e a ruralidade, seguramente progressista, mas com uma ideia patriarcal de família que o leva a exercer a sua autoridade de forma arbitrária, em particular a decidir sobre o futuro dos filhos, definindo à partida quem continua a estudar e quem se deve limitar ao trabalho doméstico, ou de campo, aproveitando-se da posição de professor para manter as peças do xadrez familiar nas posições que considera devidas.
Esta arbitrariedade induz necessários ressentimentos que o filme explora, não só para criar uma distância entre o mundo das crianças e o dos adultos, construída de segredos e silêncios aos quais chegamos através dos sussurros das crianças, como também para desenvolver arcos narrativos em personagens que ganham outra densidade quando vivem fora da influência patriarcal, como, por exemplo, o primogénito Dino, que combate as humilhações sofridas às mãos do pai refugiando-se na admiração que os irmãos mais novos lhe votam, ou de Ada, mais nova que Lucia, talvez a personagem que, em menos tempo, mais oferece à história.
Delpero deposita em Ada diferentes densidades, apresentando-a como a mais religiosamente devota de todos os irmãos, abnegada e solidária, capaz de suportar penitências autoimpostas para apaziguar as dúvidas com que se debate sobre a própria sexualidade.
Ada vive escondida, tanto no suposto pecado como na penitência, e é praticamente invisível aos olhos do progenitor, que não a entende como suficientemente inteligente para prosseguir a vida escolar quando comparada com Flavia, a irmã mais nova. Como típico autoproclamado académico da época, o pai não valoriza a sensibilidade que habita em Ada e que se manifesta, em maior evidência, na sua relação com a religião. É através da amizade que constrói com Virgínia, a órfã tida por todos como a excêntrica da aldeia, que Ada supera a relação punitiva com a religião e evolui daí para ser, de todos os Graziadei, aquela que consegue chegar ao lugar de clareza onde os seus semelhantes, incluindo a irmã Lucia, agora jovem viúva e com uma criança nos braços, não parecem conseguir chegar: a clareza sobre uma ideia própria de liberdade.
"Vermiglio", Leão de Prata do Grande Prémio do Júri no Festival de Veneza, estreia esta semana nos cinemas portugueses.
2024 | Drama | 119 min
Com Tommaso Ragno, Giuseppe De Domenico, Roberta Rovelli
Realização Maura Delpero
Class. etária M/12
Estreia em Portugal 17 Apr. 2025
Distribuidor Leopardo Filmes