Cartaz de cinema

"O Espírito da Colmeia" por Pedro Sesinando
Uma lista de boas questões

Publicado em 4 Dez. 2022 às 19:21, por Pedro Sesinando, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: O Espírito da Colmeia)

Uma lista de boas questões

O anúncio de "Jeann Dielman" no topo da lista dos 100 melhores filmes de sempre trouxe acusações de influência política e revisionismo.

Desde 1952 que, a cada década, a Sight & Sound, publicação do British Film Institute, se dedica a lançar a lista dos 100 melhores filmes de sempre de acordo com as escolhas de vários agentes da comunidade cinéfila, de críticos a curadores e programadores, passando por académicos e arquivistas, fazendo fé nas palavras de Mike Williams, editor chefe da revista.

Em paralelo, é lançada uma lista composta pelas escolhas de alguns dos realizadores mais conceituados do cinema actual, mas é a primeira lista, a dos críticos, aquela que tem gerado mais ruído.

Após anos de consagração de "Citizen Kane" de Orson Welles como o melhor filme de sempre, que superou na lista de 1962 "Ladrões de Bicicletas" de Vittorio de Sica e só deixou o trono para "Vertigo" de Hitchcock em 2012, eis que, no topo da lista de 2022, irrompe surpreendentemente um filme de 1975, "Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles", da autora belga Chantal Akerman.

A subjectividade é, obviamente, característica inata a este tipo de classificações, mas sabendo da intimidade que o Cinema, tal como outras formas de arte, consegue criar nos seus prosélitos, era inevitável a controvérsia para lá da surpresa.

Pela voz de Paul Schrader, por exemplo, surgiram críticas à escolha do filme de Akerman como o melhor de sempre, assumindo Schrader que a escolha estaria influenciada por um air-du-temps de revisionismo woke que procura a consagração de um filme considerado, desde a sua estreia, como uma espécie de manifesto feminista.

As palavras de Schrader levantam questões pertinentes, desde logo se este tipo de categorização deveria, ou não, estar imune ao contexto social e cultural contemporâneo, ou se é sequer possível presumir dessa imunidade e procurar a escolha mais intemporal e anacrónica possível.

Por outro lado, um filme como "Ladrões de Bicicletas", que venceu a primeira lista, não terá beneficiado também do entorno político em que vivia a Europa do pós-guerra? Porque não inverter o ónus e questionar o porquê de um filme tão singular como "Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles" não ter passado de uma posição anónima desde a entrada nos 100 melhores em 1982? Talvez ainda mais gritante, por que razão apenas agora, em 2022, foram considerados os trabalhos de nomes tão importantes como Agnés Varda, Maya Deren e Vera Chtylová?

Mais interessante do que as respostas a todas estas questões - as que aqui levanto e as de Schrader - é o próprio filme de Akerman, cujo título abreviaremos para "Jeanne Dielman".

É incontornável começar pela duração quando se fala de "Jeanne Dielman", sendo esta característica uma necessidade estética mais que uma extravagância, seguramente. Durante cerca de três horas e vinte minutos, Akerman filma a rotina doméstica da protagonista, interpretada por Delphine Seyrig. De Jeanne, o pouco que sabemos vamos intuindo – que é viúva e mãe, que tem uma condição modesta e que recebe homens em casa para efeitos de subsistência.

Durante os três dias que dura a narrativa vemos sempre Jeanne imersa nas mesmas actividades, numa repetição de gestos e de eventos de tal forma rígidos que nada ao redor se parece alterar, excepto o seu próprio controlo emocional, cuja degradação acompanhamos quase ao segundo.

Fazendo uso de uma encenação com longos planos de câmara fixa, Akerman apresenta o espaço doméstico como quadro opressivo, claustrofóbico, onde os gestos de Jeanne estão espacialmente restritos, usando estes artifícios para acentuar o carácter insidioso da solidão e apresentar-nos as suas consequências emocionais vistas do interior, à lupa, numa fiel imitação da vida. O culminar do filme apresenta-se abrupto, mas, ainda assim, Akerman reserva-nos, a nós e a Jeanne, o tempo suficiente para pensarmos sobre o que acabou de acontecer.

Voltando às palavras de Schrader, seguramente "Jeanne Dielman" não será uma escolha óbvia nem consensual. Seguramente não contém em si o carácter épico a que convencionalmente tem sido associado o grande cinema, de Ford, Kubrick, ou mesmo Welles. Mas sobre a sua relevância actual e futura, cito Barbara Mangolte, colaboradora de Akerman, que em 2016 afirmava: "Não acho que Jeanne Dielman tenha uma única ruga. A intensidade da solidão é sempre contemporânea.".

Não sei dizer se "Jeanne Dielman" é o melhor filme de sempre, mas sei que não contemplaria uma lista de filmes essenciais sem a sua presença.

Prestígios intactos e os insuspeitos do costume

Vertigo

Nem só do seu surpreendente líder vive a lista. "Vertigo" e "Citizen Kane" mantêm o seu prestígio intacto, completando o pódio. Dentro do top ten há espaço também para os insuspeitos Kubrick, Wong Kar Wai, Ozu e o pioneiro Dziga Vertov, sendo a grande novidade a presença de "Beau Travail", obra prima de Claire Denis, cujo trabalho recente tem sido sólido embora discreto.

Godard, Truffaut, Ford, Tarkovsky, Bergman, Bresson, Vigo, Kiarostami, Eisenstein, a tríade italiana Fellini, Antonioni e Rosellini, todos estão representados, alguns com mais do que um filme e com títulos que não deixam muito espaço ao debate.

As entradas recentes, entenda-se filmes lançados nos últimos dez anos, não são propriamente chocantes, mas perguntamo-nos se conseguirão aguentar o ímpeto até à próxima lista.

Nos casos de "Retrato de uma Rapariga em Chamas",de Céline Sciamma, e de "Get Out", de Jordan Peele, não parece que a passagem do tempo lhes seja prejudicial, antes pelo contrário. Veremos o que sucederá com "Moonlight", de Barry Jenkins, e com o aclamado "Parasitas", de Bong-Joon Ho, tendo este a particularidade de já estar perfeitamente introduzido na cultura popular.

O debate, inevitavelmente, vira-se para as ausências, universo onde cada um sente as injustiças de forma particular.

Há um grau de satisfação em encontrarmos os nossos filmes neste tipo de categorização, por muito que racionalizemos sobre a sua subjectividade.

Seguramente não contemplaria fazer uma lista dos melhores filmes que não incluisse "Il Sorpasso" de Dino Risi, ou "Morte em Veneza" de Visconti, "Jules et Jim" de Truffaut, "La Maman et La Putain", a obra prima de Jean Eustache, ou algum título de Sorrentino, ou Malle.

Congratulo-me pela presença de um cineasta tão discreto e pouco prolífico como Victor Erice, precisamente com o "O Espírito da Colmeia" – de resto, sobretudo no que toca a Sorrentino e Eustache, resta-me viver na convicção de que os grandes filmes não conhecem a efemeridade e são também mutantes na sua relevância. Aliás, e esta lista prova-o, Chantal Akerman e a sua Jeanne fazem disso paradigma.