Publicado em 20 Set. 2023 às 20:37, por Pedro Sesinando, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: O Espírito da Colmeia)
O novo filme de Serge Bozon apresenta um ator de teatro que encarna o famoso sedutor Don Juan e não consegue deixar de ver a noiva que o rejeitou em todas as mulheres que conhece.
O título do mais recente filme de Serge Bozon, "Don Juan", estreado o ano passado em Cannes e que chega agora às salas portuguesas, induz inevitavelmente a ideia de que estamos perante uma adaptação contemporânea à personagem clássica do sedutor, cujas proezas foram relatadas por Tirso de Molina ou Moliére.
Embora tal primeira interpretação não se possa considerar muito precisa, acaba, de certa forma, por não estar totalmente afastada do primeiro conceito.
É na versão de Moliére que Bozon se ancora para entrar pela psique de Laurent, interpretado por Tahar Rahim, um ator prestes a levar a palco precisamente o Don Juan tal como idealizado pelo célebre dramaturgo francês.
Laurent vive um estado de alma particular, obcecado pela mulher que o abandonou, Julie, a tal ponto de ver a sua cara em todas as mulheres com quem se cruza.
O primeiro impacto que nos é oferecido sobre o transtorno emocional de Laurent é a forma como lida com o desgosto, numa sucessão de confrontos mais ou menos impulsivos, por vezes agressivos, com as mulheres que crê serem Julie. Até ao dia em que a própria Julie, também ela atriz, é recrutada para contracenar com Laurent, gancho narrativo que Bozon utiliza para aprofundar o motif, ou seja, incrementando o eco entre a relação ficcionada em palco e a relação tumultuosa de ambos.
A emergência da verdadeira Julie na narrativa é essencial para a desconstrução de Laurent, cuja autocomiseração vai gradualmente evoluindo para uma ideia de egocentrismo do qual, na verdade, já teríamos suficientes evidências pela forma como a sua compulsão se traduz na subjugação das mulheres ao objeto da sua obsessão: Julie, precisamente.
Bozon constrói um ambiente quase onírico – para o qual também contribuirão os apontamentos musicais - não só entre o palco e a realidade, mas também na forma como apresenta as personagens secundárias. Estas figuras espectrais, seguramente as de características mais teatrais em todo o filme, ajudam à revelação da personagem de Laurent, expondo um passado da personagem sobre o qual só poderíamos especular e, ainda, permitindo a Bozon manter os paralelismos com o texto de Moliére.
O pianista interpretado por Alain Chamfort, pai de uma mulher que se suicidou por amor a Laurent, representa os familiares desonrados por Don Juan. A personagem de Damien Chapelle invoca o fiel servo Sganarelle, aquele que mantém compaixão por Laurent.
Pese embora o protagonismo dado a Julie, talvez por culpa da interpretação omnipresente de Virginie Efira, o filme ondula em redor das emoções de Laurent, a verdadeira pedra angular da história. A dada altura, durante os ensaios da peça, Laurent expõe uma perspetiva perante o seu ofício, em que assume que o seu papel não passa por julgar, ou defender, mas apenas por dar vida à personagem.
Seguramente Bozon não procura a redenção de Laurent, antes parece querer dissertar sobre as várias formas que o narcisismo pode assumir, sendo, neste ponto, muito mais honesto que a sua própria personagem.
2022 | Comédia | 110 min
Com Tahar Rahim, Virginie Efira, Alain Chamfort
Realização Serge Bozon
Estreia em Portugal 14 Set. 2023
Distribuidor Leopardo Filmes