Publicado em 11 Jul. 2020 às 14:00, por Samuel Andrade, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: Síndrome do Vinagre, Cinema Português)
Sofia Bost, Leonor Teles e Mariana Gaivão falam sobre as razões que as levam a gostar de filmar em película, a propósito do lançamento das suas mais recentes obras.
A chegada às salas portuguesas, nesta quinta-feira, em 12 cidades, das curtas-metragens "Dia de Festa" (Sofia Bost), "Ruby" (Mariana Gaivão) e "Cães Que Ladram aos Pássaros" (Leonor Teles), não só assinalam uma novidade no habitual panorama de estreias nacionais, como encerram a particularidade – que "O Síndrome do Vinagre" não podia deixar de salientar – de terem sido rodadas, inteira ou parcialmente, em película de 16mm.
Falamos com duas das realizadoras sobre as afinidades e motivações em levar cinema português filmado em película às salas, acerca das suas intenções artísticas e, inevitavelmente, que opiniões nutrem sobre o futuro dos suportes analógicos no seio da produção cinematográfica nacional.
Para Sofia Bost, realizadora de "Dia de Festa", a opção de filmar em 16mm foi motivada pelo próprio argumento do filme: "o grão do 16mm tem uma textura que é mais adequada ao tema e ao ambiente deste filme. O digital funciona melhor quando se quer uma estética limpa, polida – isto é o contrário do que eu queria. O filme fala de relações complicadas, de sentimentos difíceis, tem um certo peso que precisava de ser potenciado esteticamente".
Para esta escolha, também foi determinante o facto de a película ter "uma ligação ao real muito mais directa do que o digital", sendo que o efeito da película de 16mm - "apenas um meio, uma ferramenta" - sempre "depende do conteúdo" da narrativa.
Estreado na secção Semana da Crítica, do Festival de Cannes de 2019, "Dia de Festa" é uma curta-metragem sobre a complexidade das relações entre mães e filhas: a protagonista, Mena, prepara a festa de aniversário da filha com dificuldades financeiras e a contragosto, e recebe um telefonema da sua mãe que a deixa perturbada.
Apesar de ser o primeiro filme de Sofia Bost em contexto profissional, este não representa a sua estreia a filmar em película: "já tinha feito curtas na escola de cinema, incluindo dois exercícios em 16mm. Já estava familiarizada com os aspectos técnicos e estéticos do formato, e isso foi decisivo para fazer esta escolha com mais confiança". Para a realizadora, os desafios de trabalhar, em Portugal, com formatos analógicos são evidentes e devidamente enunciados: "depende dos orçamentos, mas no nosso contexto português o maior desafio é a quantidade limitada de stock. No digital não há limite", acrescentando que "num set em que se está a filmar com película, a partir do momento em que a câmara está ligada, e ouvimos a película a passar pela gate, estamos todos a levar aquilo muito a sério – porque o limite de oportunidades para acertar é real".
Salientando que "outro grande desafio é a ausência de um laboratório em Portugal", obrigando à revelação de filme fora do país, Sofia Bost espera que se continue a filmar em película no nosso país: "quanto menos se filma em película mais caro e difícil se torna o processo. Os laboratórios acabam por fechar. Não é só uma questão de preservarmos a origem analógica do cinema - a estética da película é diferente e não há maneira de a reproduzir no digital".
Para "Cães Que Ladram aos Pássaros", a história de Vicente e da sua família, obrigados a sair da sua casa, no centro do Porto, por força da especulação imobiliária, Leonor Teles escolheu filmar maioritariamente em 16mm por "questões estéticas e afetivas", mas também porque é um suporte que "visualmente comunica melhor aquilo que procuro. A textura, o grão, os tons, é uma coisa quase emocional, tem vida!"
Os formatos analógicos, aliás, continuarão a ser primeira escolha para a realizadora: "não só gosto mais visualmente, adoro mesmo, como há um energia muito forte na rodagem. É muito especial filmar em película, há uma concentração e uma magia que não se tem quando podemos filmar tudo o que queremos (neste caso quando se filma em digital). A película ajuda a pensar o filme, a escolher verdadeiramente aquilo que queremos filmar".
Além disso, "poder filmar menos", "fazer muito ensaios, tenho de escolher muito bem o que quero filmar" e a expetativa de "esperar pela revelação para ver como é que ficou", são os principais desafios de Leonor Teles numa rodagem em analógico: "o resultado final compensa, a imagem da película é muito mais orgânica e perto do meu olhar. Os tons de pele por exemplo, na película ficam muito mais bonitos que no digital. Mesmo um plano feio, em película fica bonito!"
Quanto à possibilidade de continuar a filmar em película no futuro, Leonor Teles considera: "se as pessoas tiverem orçamento para isso, vão querer experimentar pelo menos uma vez", acrescentando que "a magia da película, quando a câmara começa a rolar, é um experiência inigualável – é como se a equipa toda estivesse a suster a respiração até dizerem corta, como se estivéssemos todos focados num único objetivo, não há distrações. Certamente é algo que quero poder voltar a fazer".
O terceiro filme da sessão "Três Realizadoras Portuguesas" é "Ruby", de Mariana Gaivão, que aborda duas gerações de uma comunidade estrangeira a viver em Portugal. A realizadora preferiu registar essa história em 16mm por ser "o formato ideal para as cores da Serra da Lousã (os verdes profundos da montanha, a densidade dos negros nas sombras da caverna, a luminosidade dos rostos)" e "como forma de me enraizar mais profundamente na formalidade dos planos, contrapondo o naturalismo dos não atores".
Para a concretização do filme, o trabalho do diretor de fotografia, João Ribeiro, foi determinante. Tal como explica Mariana Gaivão, "Trabalhámos no limite da luz real, com compensações pontuais, pesquisando exaustivamente as horas particulares de cada plano, a emulsão certa", assim como "estudando a forma como uma madrugada imprime, como um rosto reage a essa luz, ou como um strobe interage com determinada velocidade de obturação". Nesta colaboração, "Aprendi muito com ele, devolveu-me a crença num método paciente mas exaustivo de pensar o cinema".
Segundo a realizadora, "cada projeto determina o seu suporte", mas filmar "Ruby" em 16mm não só revelou-se um desafio pelo "limite físico da metragem disponível" que a película determina, como "foi uma opção com algumas reservas iniciais, temia perder a margem para me adaptar ao que via. Só decidi por completo quando garanti latas suficientes de 16mm que me permitissem respirar no processo, e falhar sempre que necessário". No entanto, confessa ser uma admiradora do "lado impressionista do 16mm, principalmente nos exteriores naturais".
Nota: artigo atualizado a 13/07/20 de forma a incluir as declarações da realizadora Mariana Gaivão