Publicado em 6 Mai. 2021 às 20:40, por Pedro Sesinando, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: O Espírito da Colmeia)
Uma reflexão sobre o filme "Adam", da realizadora marroquina Maryam Touzani, que aborda de forma certeira a questão dos desafios às nossas expectativas e preconceitos enquanto espectadores de cinema.
Antes de "Adam", a sua primeira longa-metragem, a cineasta marroquina Maryam Touzani já causara algum impacto quando em 2014 dirigiu "Sous ma peau vieille", documentário que aborda a prostituição em Marrocos através do relato de quatro trabalhadoras do sexo.
Não deverá ser coincidência que para a sua primeira obra de ficção Touzani tenha também escolhido uma história sobre mulheres fragilizadas perante as normas sociais, colocadas numa condição que as induz a lidar com a culpa, a vergonha e o medo do estigma que é, pelo menos em "Adam", tão forte como a estigmatização em si mesma. No fundo, sobre como estes sentimentos podem ser instrumentalizados enquanto agentes opressivos numa sociedade conservadora. Mas se é relativamente seguro afirmar que "Adam" é um filme que não esconde aquilo que quer tratar, também é verdade que rejeita ser panfletário por si só e que é nas subtilezas que reside o seu maior trunfo.
A habilidade de Maryam Touzani passa por nos criar um ambiente confortável, de forte beleza estética, e deixar o emocional do filme ser conduzido pelas duas protagonistas, Samia, uma jovem rapariga grávida que deambula pelas ruas da cidade, e Abla, viúva e mãe, que será quem estende a mão a Samia.
A narrativa é ditada por estas mulheres, ou melhor, pela forma como evoluem ao longo do filme, individualmente e na forma como se relacionam. Uma relação que do confronto e da desigualdade de forças iniciais evolui gradualmente para uma situação de reciprocidade. É Abla quem abre a porta de casa a Samia, logo é Abla quem dita as regras. Este facto, junto com uma aparente carga moralista implícita na personagem de Abla, coloca Samia numa posição submissa, vulnerável aos humores da sua anfitriã. Paradoxalmente ou não, fica percetível que Abla age por altruísmo mas, ao mesmo tempo, parece usar essa superioridade moral para se hierarquizar perante Samia.
O que o filme nos sugere é que a aparente arrogância de Abla está relacionada com a forma como se relaciona consigo mesma, com a sua condição de mulher e viúva, mas, acima de tudo, com a forma como sente que será julgada pelo quebrar das mais elementares convenções sociais, ao abrigar uma jovem grávida tresmalhada. Abla está, de certa forma, numa situação de opressão tão evidente como a de Samia, com a diferença de que não é consciente da sua condição.
Também a retratar este particular Maryam Touzani está fortemente inspirada. Praticamente toda a acção se passa dentro de portas, na casa e na pastelaria de Abla. O exterior é-nos sugerido pelas visitas inoportunas das vizinhas, ou do afável cortejador de Abla, e também pela janela através da qual Abla gere o seu negócio. A rua e as pessoas enquanto factores de desconforto, a casa enquanto abrigo. Touzani evita, no entanto, retratar o interior como um encarceramento, propondo uma cuidada cinematografia que se inspira nos jogos de luz dos mestres da pintura flamenca do século XVII (a cena em que Samia e Abla estão a trabalhar a massa juntas é disto exemplo paradigmático e um momento que só por si vale o preço do bilhete).
Tanto a fotografia como o soberbo desempenho das protagonistas são fundamentais para que Touzani consiga contar a história com a subtileza necessária. Também ajuda o notável sentido de ritmo e gestão de silêncios da própria realizadora. Ao sair da sala cada um poderá fazer de "Adam" a sua interpretação com um certo grau de liberdade. O filme não nos prende a uma visão única nem demonstra nenhum tipo de sectarismo sobre a mensagem que quer passar.
Da solidariedade entre mulheres, da reciprocidade nas relações humanas, até de uma visão mais prosaica de ser apenas um filme sobre duas mulheres comuns numa situação incomum, "Adam" presta-se a várias interpretações e pode provocar, como tantas vezes em Cinema, diferentes emoções em diferentes espectadores. Mas talvez o ponto mais surpreendente de "Adam" seja a forma como coloca em xeque os nossos próprios preconceitos enquanto público.
É muito comum entrarmos na sala de cinema com a ideia de que o que nos vai ser proposto será desvendado no fim, que teremos as nossas respostas. Não estamos preparados para a frustração que implica lidar com um final aberto, ou sem respostas definitivas. Passei por isso ao longo do filme, especialmente com a personagem Samia. Na minha interpretação interior ia postulando as mais diversas e bastante estereotipadas teses para a situação de Samia: de onde veio, porque está sozinha, onde está a família e porque a abandonou, engravidou sem estar casada, engravidou de alguém casado. Todo o meu subconsciente trabalhava numa forma de racionalizar a situação de haver uma mulher grávida a pedir na rua.
O filme não satisfez a minha curiosidade e não resisti a ler entrevistas e comentários de Maryam Touzani sobre esta abordagem ao passado de Samia. A resposta foi simples e, visto ao retrovisor, bastante evidente: "se lhe desse um passado seria como se ela fosse culpada de alguma coisa, ou inocente de alguma coisa e o filme não trata disso". Touzani desafiou os meus preconceitos e ganhou por larga margem.