Publicado em 7 Jan. 2021 às 15:33, por Samuel Andrade, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: Síndrome do Vinagre)
Disponível no catálogo da Amazon Prime, o primeiro filme de Andrew Patterson louva as tecnologias de comunicação que dominaram o Século XX.
No panorama da cultura popular e no cinema em particular, o sentimento de nostalgia pelas tecnologias que, até ao dealbar do Século XXI, foram presença constante no nosso quotidiano continua a marcar presença e, aliás, aparenta ter adquirido especial tração nos últimos anos.
Neste contexto, recordem-se incursões cinematográficas recentes pelos primeiros métodos de fotografia - nomeadamente, o processo do daguerreótipo em "O Segredo da Câmara Escura", de Kiyoshi Kurosawa, ou numa curiosa sequência de "Mr. Turner", de Mike Leigh -, pelos primórdios da Sétima Arte ("A Invenção de Hugo", de Martin Scorsese), por experiências analógicas de radiodifusão ("Códigos de Defesa", de Kasper Barfoed), pelos jogos de vídeo dos anos 80 ("Black Mirror: Bandersnatch", de David Slade), ou por métodos em desuso de gravação audiovisual (o filme antológico "V/H/S", exibido por cá em 2013 no festival MOTELX).
O exemplo mais recente dessa tendência dá pelo nome de "The Vast of Night", a estreia na realização do norte-americano Andrew Patterson, disponível para streaming na Amazon Prime. Entre o thriller de mistério e a ficção-científica, a sua narrativa, situada numa cidade remota do Novo México nos finais da década de 1950, é simples e económica (tudo decorre no espaço de uma só noite), assentando num duo de protagonistas - uma operadora telefónica (Sierra McCormick) e um animador de rádio (Jake Horowitz) - que investigam a origem de uma estranha transmissão de áudio captada no decorrer de uma chamada de telefone.
Para além da eficácia do argumento, subjaz em "The Vast of Night" a discreta, mas não irrelevante, exposição de tecnologias analógicas em uso na era retratada. Pois, no filme, abundam gravadores eletrónicos de voz, uma central telefónica de comutação manual que terá papel preponderante na ação, estações de rádio de baixa frequência, arquivos de bibliotecas e o processo moroso (dir-se-ia "ritualístico") de instalar bobines de áudio em fita magnética para a sua reprodução.
Por outras palavras, estamos perante uma obra de ficção-científica analógica até ao tutano. Esta asserção é mais evidente se atentarmos ao facto de Andrew Patterson ter rodado "The Vast of Night" inteiramente em película de 35mm, explorando incessantemente as potencialidades do formato, mas sem nunca cansar o espectador.
Em sintonia com a ação noturna do filme, a sua direção de fotografia propõe uma abundância de sombras e cores quentes, uma imagem difusa e granulada que intensifica o mistério da narrativa e um impressionante conjunto de planos-sequência demonstrativos da polivalência, intemporalidade e do virtuosismo que as câmaras analógicas são capazes de operar.
Estas "características técnicas", assim como o contexto dramático em que se situa, remetem-nos, ainda, para as experiências das séries televisivas produzidas nos idos de 1950 e 1960, como "The Twilight Zone", ou para os primeiros trabalhos de Steven Spielberg, Sam Raimi e J.J. Abrams (sobretudo, o seu "Super 8", que até possui alguns paralelos com este "The Vast of Night").
Não fossem os seus óbvios elementos de ficção, e quase poderíamos aventurar-nos a denominar "The Vast of Night" como documentário sobre tecnologias de comunicação ao dispor da humanidade no último século. A sensibilidade analógica do filme é, contudo, apenas um dos seus principais atrativos – mas este é O Síndrome do Vinagre, e a nossa atenção só poderia mesmo focar-se nas especificidades mecânicas, eletrónicas, ou magnéticas, aqui captadas pelo celuloide.
Se, como alguns afirmam, a nostalgia e a estética "retro" são a nova vanguarda, então "The Vast of Night" está completamente na dianteira, e não poderíamos recomendar mais a sua visualização.