Publicado em 11 Feb. 2025 às 16:26, por Samuel Andrade, em Notícias de cinema, Opinião (Temas: Síndrome do Vinagre)
Num filme que recorre ao formato VistaVision, com maior detalhe e resolução, só perdemos em não usufruir de melhor projeção cinematográfica.
Com mais de três horas e meia de duração, nomeado para dez Óscares, laureado em festivais como Veneza, nos Globos de Ouro, e por associações da crítica norte-americana, "O Brutalista" figura em várias listas dos melhores de 2024. Tudo isso, aliado ao feito notável de um épico histórico tão ambicioso ter sido produzido por menos de dez milhões de dólares.
Analisar os números de "O Brutalista" é um exercício curioso, mas o que realmente merece destaque é a proficiência técnica, a atmosfera e um "sabor" a experiência cinematográfica do passado que Brady Corbet conseguiu com maestria no seu mais recente trabalho.
No que quase se assemelhou a uma estratégia de marketing, "O Brutalista" foi rodado em VistaVision, processo fílmico onde, através de um negativo em 35mm com oito perfurações (ao contrário das habituais quatro) que corre horizontalmente em câmaras específicas, se obtém a revelação de imagens de ecrã largo com mais resolução e detalhe.
Mais explicações e detalhes técnicos podem ser consultados no site Wide Screen Museum.
Historicamente, o VistaVision foi introduzido, na década de 1950, em resposta à crescente popularidade da televisão e como concorrente de outros grandes formatos, tais como os anamórficos Cinerama e CinemaScope.
Apesar dos convincentes resultados de projeção – o VistaVision foi usado, por exemplo, em "A Desaparecida", de John Ford, ou "A Mulher que Viveu Duas Vezes", de Alfred Hitchcock –, o formato foi literalmente abandonado pela indústria em 1961.
Chegámos a 2024 e Brady Corbet recupera este processo de fazer cinema que, até "O Brutalista", era considerado peça de museu, sem que a escolha seja um mero capricho tecnológico. Há intuito e, nas palavras do realizador, "uma presença do passado".
Para contar a vida e o percurso do arquiteto húngaro László Tóth, sobrevivente do Holocausto e emigrante nos Estados Unidos, ao longo de quatro décadas, Corbet encontrou no VistaVision um meio técnico em função da época em que o filme decorre. Ou seja, "a melhor forma de aceder àquele período era filmá-lo num suporte inventado na mesma década".
Uma intenção partilhada por Lol Crawley, diretor de fotografia de "O Brutalista": "Visualmente, [Corbet] quis alcançar uma qualidade de arquivo, de sensação de tempos passados".
Essa união de especificidade técnica e motivações artísticas perpassam, de facto, para a pátina de "O Brutalista". Aqui, vislumbra-se a aparência de algo que podia mesmo ter sido filmado na era retratada, de aspeto arquivístico e documental, potenciado pela reverência às características da sua matriz analógica – inclusive, a transferência para projeção digital não sonega o grão nem o ocasional picotado na emulsão do negativo em película.
A qualidade pictorial do filme, aliada a um argumento denso e dialogante com muitos dos desafios sociais e políticos da nossa era (movimentos migratórios, os refugiados de guerra, xenofobia e antissemitismo, capitalismo e luta de classes), fazem de "O Brutalista" um dos eventos cinematográficos que podem ser vistos nas nossas salas.
Todavia, lamenta-se que Portugal não disponha de uma exibição conforme os padrões formais de "O Brutalista". Sequências captadas durante a luz dourada do crepúsculo (a chamada golden hour), enquadramentos de estruturas arquitetónicas, a complexa iluminação de cenários interiores – em especial, o sublime plano-sequência que abre o filme – ou as fulgurantes vistas das pedreiras de mármore de Carrara perdem, mesmo com projetores laser 4K, contraste, resolução e difusão de luz. O suporte digital compromete a fotografia da obra.
Mérito para Brady Corbet em levar ao grande ecrã um título demonstrativo de que a relação entre o suporte de rodagem e o de projeção não é mero pormenor.
A oportunidade (ou não) de ver "O Brutalista" em cópias de 35mm ou 70mm – e elas existem, por cortesia da norte-americana Fotokem – não só nos recorda a matéria artefactual do cinema, como, provavelmente, fomentaria um público mais exigente no que toca à apresentação da Sétima Arte.
Sem menosprezar imperativos comerciais, fica lançado o repto junto de distribuidores e exibidores nacionais para que, em contextos semelhantes aos de "O Brutalista", se promovam, uma ou outra vez, projeções analógicas de filmes rodados em suporte analógico. Julgando pelas suas palavras, o próprio Brady Corbet daria absoluto aval.