Cartaz de cinema

"O Espírito da Colmeia" por Pedro Sesinando
"Ruggine", Fábula negra

Publicado em 15 Ago. 2021 às 11:53, por Pedro Sesinando, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: O Espírito da Colmeia)

"Ruggine", Fábula negra

Sem estreia comercial nas salas portuguesas, o filme do italiano Daniele Gaglianone é uma fábula sobre os mundos dos adultos e das crianças e uma pequena pérola que merece atenção.

Há uma cena em "Ruggine", filme de Daniele Gaglianone de 2011, que de tão deslocada da narrativa acaba por se tornar no ponto de viragem do entendimento que possamos ter relativamente ao que estávamos a ver até ao momento. Na dita cena o primeiro plano foca-se na personagem do Doutor Boldrini, nó de gravata perfeito e olhar tresloucado, com um plano secundário de um automóvel numa paisagem de campo num fim de tarde de verão.

O até ao momento discreto médico de província, interpretado por Filippo Timi, teatraliza em estranhas expressões faciais até se aventurar numa interpretação de "una furtiva lagrima" com o empenho de quem está em palco a recriar a ópera de Donizetti. Gaglianone deixa a câmara fixa enquanto escutamos um homem numa óbvia revelação de loucura. O Doutor vira-nos costas e dirige-se lentamente em direcção ao carro sem nunca sair de personagem enquanto o plano perde lentamente o foco.

Um dos acertos de Gaglianone neste belo pedaço de cinema reside precisamente na escolha do actor. Filippo Timi vinha de dois papéis bastante fortes nos anos recentes, ao recriar o Duce e o seu filho bastardo em "Vincere" de Marco Bellocchio, e ao ter um pequeno, mas marcante contributo em "A Solidão dos Números Primos". Nestes filmes, o que mais impressionou nos seus desempenhos foi a forma como geriu nas suas personagens vários graus de componente emocional, mais tenso ou mais violento, para lá de uma invulgar capacidade camaleónica. Em "Ruggine", ou pelo menos na cena supracitada, tal capacidade de ser subtil a chocar era absolutamente imprescindível para que a cena não caísse no ridículo.

A essência de "Ruggine", que poderíamos traduzir para português como "Ferrugem", conta-se em poucas palavras. A acção alterna entre o tempo presente e a infância dos protagonistas, no final dos anos 70, num bairro romano habitado por migrantes da Itália meridional, com todos os estigmas que daí advêm. As famílias vivem num contexto de pobreza, mas em coesão comunitária, onde as crianças gozam de bastante liberdade. Tendo este ambiente como ponto de partida, Gaglianone começa por mostrar a leveza e inocência da infância, com alguns laivos de ambiente coming-of-age até que, como em todas as fábulas, chega a vez do monstro. São-nos apresentados dois mundos como sendo totalmente desassociados, o mundo das crianças e o mundo habitado pelos adultos. O ponto de convergência entre estes dois mundos é precisamente o médico, Boldrini, endeusado pelos adultos e temido pelas crianças. O monstro e o doutor.

A grande habilidade de Gaglianone reside no facto de manter esta dicotomia viva e consistente durante grande parte do filme, apresentando o médico reservado e composto quando na presença dos adultos e errático, de olhar lunático e distante, quando visto pela lente das crianças. Nesta situação, quando observado pelas crianças, ficamos na dúvida se o que vemos é real ou apenas uma caricatura de uma memória corrompida pela imaginação infantil e consolidada pelas personagens em adultos.

É interessante a maneira como Gaglianone conduz a narrativa, fazendo-a evoluir subtilmente para uma espécie de fábula invertida, onde os adultos são inocentes e as crianças conscientes. Ou por outra, onde as crianças perdem a inocência muito antes dos adultos. A própria técnica de Gaglianone o traduz, muito mais lenta e pacífica quando filma o mundo dos adultos, mais agreste e suja quando filma o das crianças. Este balançar dura até ao evento que provoca que o mundo dos adultos seja forçado a reconhecer a realidade das crianças e dos monstros que ali habitam. Por uns momentos tudo se torna turvo e confuso. Da placidez ao caos, Gaglianone parece estar a filmar um naufrágio nocturno em mar alto. O bairro adulto, até aí abstraído do perigo, chora as crianças perdidas sem nunca suspeitar do respeitável Doutor. Só as crianças têm acesso ao outro lado do espelho.

Lendo nas entrelinhas de "Ruggine", há um subtexto de retrato social das comunidades que, maioritariamente vindas do Sul, se alojaram nos bairros suburbanos das cidades industrializadas do Norte de Itália para fugir à pobreza. A ingenuidade dos adultos e a vulnerabilidade das crianças geram a coutada perfeita para uma personagem sinistra como o Doutor Boldrini.

Quando em tempo presente, o filme torna-se mais lento. É um evidente suporte narrativo ao que se passa nos anos 70, mas, sobretudo, uma forma de dar outra leitura ao filme, de tratar a ideia de como os traumas do passado são carregados até à vida adulta. Aqui Gaglianone não consegue escapar a certos estereótipos, contando mais uma vez com a capacidade do elenco para evitar cair na vulgaridade (a personagem de Valerio Mastandrea é disso exemplo – seria um desastre se entregue a um actor menor).

No extenso Olimpo do cinema italiano, mesmo no mais contemporâneo, "Ruggine" dificilmente entrará. No entanto, não sendo uma obra memorável, é um filme com vários pontos de interesse e que, seguramente, merecia ter sido algo mais do que uma nota do rodapé do cinema italiano de 2011. E quantos "Ruggines" não andarão por aí perdidos a aguardar que alguém os descubra.

Trailer "Ruggine"