Publicado em 19 Ago. 2023 às 14:32, por António Quintas, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: Cinema da América-Latina)
Kleber Mendonça Filho assina um fascinante tratado de amor e memória onde se cruzam experiências pessoais e recordações coletivas da cidade de Recife.
Não é preciso ter alguma vez estado em Recife para apreciar "Retratos Fantasmas". De todo. O filme contém argumentos mais do que suficientes para cativar o neófito em questões recifenses, que nunca tenha passado pela Avenida Guararapes, atravessado a Ponte Duarte Coelho, experimentado os famosos congestionamentos de trânsito, ou admirado a Torre de Cristal de Brennand desde a Praça do Marco Zero.
Contudo, o conhecimento da cidade vai aproximar o espectador da narrativa, acrescentar-lhe uma camada de profundo afeto e permitir-lhe captar os sinais telegrafados aqui e ali por Kleber Mendonça Filho durante os 93 minutos de uma sessão espírita onde o realizador, como se fosse um médium, convoca os espíritos de um passado rico e sofrido.
Repartido por três andamentos, "Retratos Fantasmas" começa com um retorno à casa familiar, no bairro Setúbal, encaixado entre as torres sem fim de Boa Viagem, na zona sul de Recife, junto ao mar. A casa onde Kleber cresceu como cineasta, em pequenos filmes amadores feitos com amigos e que, anos mais tarde, serviria de cenário a "O Som em Redor" (2012), a sua estreia na longa-metragem de ficção. O lar onde com a mãe, a historiadora Joselice Jucá, partilhou a esperança adiada na eleição de Lula e assistiu à progressiva instalação de grades e vedações por toda a parte.
Daqui, tem início uma viagem pelo mapa cinematográfico do centro de Recife, pontuado por imagens de arquivo recolhidas durante os sete anos em que o filme esteve a ser desenvolvido. O casal Tony Curtis e Janet Leigh junto ao prédio dos correios e na praia de Boa Viagem. O desfecho de um suicídio filmado como uma cena de um thriller. Velhas decorações de Natal. Extratos de carnavais de outras eras. Quando ainda havia dinheiro. Uma tese várias vezes repetida - a fuga do dinheiro para Boa Viagem a partir de 1980, o definhar do centro e a morte consequente das suas salas de cinema, a mudança para o modelo do multiplex e das salas no interior dos centros comerciais.
Antes, foi a época das grandes salas dos anos 1930 e 40, onde se misturaram tramas de espionagem e propaganda. Como a do Art Palácio, cinema projetado pela UFA, a empresa cinematográfica alemã ao serviço do regime nazi durante a Segunda Guerra Mundial. Integrava o plano de ter salas em pontos chave do Brasil para difundir propaganda. O andar do conflito trocou-lhes as voltas.
Foi o último projecionista do Art Palácio, Alexandre Moura, tema de um documentário dos anos 90, quem chamou a atenção para este lado esquecido do edifício, um de vários que tiveram como destino o fecho, a reconversão, a ruína, a demolição pura e simples.
O Moderno, o Trianon, o Veneza, a sala emblemática que resistiu até 1998 e ainda hoje permanece da memória de muitos habitantes da cidade. Todas integram agora o passado coletivo de Recife e são as protagonistas de "Retratos Fantasmas", em boa parte ocupado por planos onde se vagueia pelo antes e pelo agora, onde alternam imagens dos dias de glória com as mutações provocadas pelo tempo e pelo desmando.
Em entrevistas, Kleber Mendonça Filho nega o lado nostálgico. O documentário recusa a ideia feita do "antigamente é que era bom". A cidade mudou. Ponto.
E há esperança. O São Luiz permanece como templo cinéfilo, com as sessões esgotadas e um público jovem, a transbordar cultura, que conversa animado junto às margens do Capibaribe. É um resistente diante de outros lugares que passaram a acolher os cânticos e o bater no peito das igrejas neopentecostais. Os seus magníficos vitrais encontram-se temporariamente apagados para obras de conservação, mas o regresso está prometido.
Ao mesmo tempo, após uma década de portas fechadas, reabriu o restaurado Teatro do Parque, 800 lugares, sala escolhida para a primeira exibição de "Retratos Fantasmas" em Recife, a 14 de agosto, casa cheia num local a poucos passos de onde a maioria das suas cenas foram rodadas.
"Retratos Fantasmas" é um filme de memórias, mas também de regressos ao mundo dos vivos. Serviu de pretexto para restaurar a curta documental "Recife de Dentro Pra Fora", dirigida por Katia Mesel em 1997, e para mostrar ao mundo o acervo do fotógrafo Wilson Carneiro da Cunha, o autodidata dono de um quiosque que registou o quotidiano do centro da cidade entre 1953 e 1983. São dele muitas das fotos que pontuam o documentário.
Mais importante do que tudo, apresenta-se como um tratado fascinante sobre amor e memória que cruza a vertente pessoal e a coletiva. Porque, como diz o contador de histórias Kleber Mendonça Filho durante o filme, "é muita história"...
"Retratos Fantasmas" tem estreia exclusiva nas salas de cinema a 24 de agosto, em simultâneo no Brasil e em Portugal.