Publicado em 6 Nov. 2022 às 19:49, por Pedro Sesinando, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: O Espírito da Colmeia, Cinema Português)
Uma reflexão sobre a tragédia rural de Tiago Guedes.
Na primeira cena de "Restos do Vento", Tiago Guedes submerge-nos no meio de um ritual de contornos pagãos, numa aldeia do interior de Portugal, através de um plano sequência que nos apresenta os primitivismos do dito ritual, em que a humilhação é a ferramenta usada para um despertar de virilidade nos rapazes, intimidados pelos homens mais velhos a sair pelas ruas encapuçados à caça de raparigas.
Ocorre a um dos jovens, Laureano, acometido pela moral mas também pela inconsciência, quebrar as tácitas regras do ritual, defendendo uma rapariga do cerco dos encapuçados e chegando a revelar a identidade de um deles.
A ideia de matilha, que de resto paira ao longo do filme, tem então o seu primeiro episódio quando Laureano é violentamente castigado como resposta à sua traição.
A narrativa avança então para os mesmo protagonistas já em idade adulta, embora ainda marcados pelos acontecimentos do dia da iniciação.
Este evento de adolescência permite a Tiago Guedes introduzir uma bagagem emocional nas personagens e também veicular aquelas que parecem ser as ideias condutoras da narrativa, não só as dinâmicas de comunidade e de como se criam fracos para consagrar os fortes mas também sobre os próprios mecanismos da culpa e da moralidade. Aliás, o filme aparenta ser uma sucessão de dilemas morais aplicados às personagens, numa forma muito garcialorquiana de ter o passado a cobrar as suas dívidas.
O mais evidente exemplo vem suportado na personagem de Judite, brilhantemente interpretada por Isabel Abreu, que é, durante grande parte do filme, a personificação da virtude, da esperança de se sair decente do outro lado do túnel, crescendo numa comunidade sujeita a rituais tão anacrónicos quanto violentos. Ela e Laureano são, de resto, os únicos inocentes.
Judite, a virtuosa, quando acossada, escolhe a sobrevivência, não sem ausência de remorso. Ao fazê-lo vai desencadear uma série de eventos que afinal confirmam os maus presságios que parecem sobrevoar todo o ambiente do filme, um prenúncio de tragédia mais uma vez tão evocativo de Garcia Lorca.
A espiral que resulta do dilema de Judite acaba por envolver as restantes personagens (conceda-se que algumas são-no de forma bastante forçada), recaindo a punição sobre Laureano, numa espécie de determinismo cínico que poderia ter sido evitado, em que o justo paga e os pecadores são poupados.
"Restos do Vento" tem nas personagens mais densas a sua maior força. Laureano, numa interpretação de Albano Jerónimo que consegue fugir ao arquétipo do "tonto" da aldeia, é fundamental na narrativa para o conflito interno a que Judite é sujeita. Samuel, interpretado por Nuno Lopes, é a personagem que mais joga com as filias e fobias internas do espectador, fazendo-o balançar entre a empatia e o desdém.
Para lá desta tríade, os restantes protagonistas parecem ter menos força, não se livrando o filme de uma ou outra personagem desnecessária.
Sendo uma peça sólida, em certos momentos brilhantemente filmada e com o bom senso de evitar o romantismo da ruralidade, "Restos do Vento", dada a violência dos temas que aborda, talvez pedisse algo mais visceral e de exploração das suas melhores personagens e, seguramente, menos urgência em precipitar-se para um final de história tão definitivo.