Publicado em 13 Fev. 2023 às 19:36, por Samuel Andrade, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: Síndrome do Vinagre)
A figura do projeccionista de cinema regressa como personagem num conjunto de filmes recentes.
Seja por coincidência, ou pelo espírito de nostalgia analógica de que o "sabor dos tempos" parece infundido, facto é que a produção cinematográfica, internacional e contemporânea, tem dedicado particular tempo de metragem à figura clássica do projeccionista de cinema – ou seja, o responsável pelas bobines de película de 35mm iluminadas por bastões de carbono a arder em arcos voltaicos e a laborar no interior de exíguas cabines.
Não que estejamos perante uma tendência esmagadora, mas, no espaço de sensivelmente dois anos, "Last Film Show" (2021, Pan Nalin), a curta-metragem "Horror Anthology: "The Projectionist" (2021, Daniel Marks), "Pearl" (2022, Ti West), "Império da Luz" (2022, Sam Mendes) ou, de forma mais velada, "Os Fabelmans" (2022, Steven Spielberg) e "Babylon" (2022, Damien Chazelle), apresentam, com maior ou menor relevo para o argumento, um projeccionista como personagem.
E neste rol, aposto, escapa algum título...
(Bhavesh Shrimali e Bhavin Rabari em "Last Film Show", de Pan Nalin)
Historicamente, na Sétima Arte, o estilo de vida, as especificidades e "manias" profissionais do projeccionista granjearam um variado conjunto de exemplos.
Desde Buster Keaton em "Sherlock Jr." (1924) ao famoso Alfredo de "Cinema Paraíso" (1988, Giuseppe Tornatore), do part-time de Tyler Durden em "Clube de Combate" (1999, David Fincher) a Mélanie Laurent em "Sacanas Sem Lei" (2009, Quentin Tarantino), a títulos mais obscuros – onde projeccionistas são, de facto, os protagonistas – como "The Projectionist" (1970, Harry Hurwitz), "O Círculo do Poder" (1991, Andrey Konchalovskiy) e "Vão-me Buscar Alecrim" (2009, Benny Safdie e Josh Safdie), poder-se-ia quase redigir um livro inteiro sobre a relação entre narrativa cinematográfica e projecção analógica.
Neste particular, a novidade é a proximidade temporal da estreia dos filmes já citados durante os últimos dois anos e a "reciclagem" de temas e pormenores que outras obras dedicaram ao projeccionista de cinema (e, por inerência, aos próprios fundamentos da arte cinematográfica).
A gramática dos 24 fotogramas por segundo e da persistência da visão, a inflamabilidade da película de nitrato, o encanto pueril de uma criança perante a máquina de projecção, o corte/roubo de fotogramas de uma cópia em 35mm, ou o "charme" que, habitualmente, se confere à vivência de quem transporta um filme da celuloide para o ecrã, continuam a ser aspetos de realce.
Não que daí advenha qualquer prejuízo; talvez essa realidade seja apenas outra manifestação (paralela às sequelas e aos reboots da Marvel e DC Comics?) da reciclagem narrativa e temática que tanto apraz à produção cinematográfica.
Toby Jones e Micheal Ward em "Império da Luz", de Sam Mendes
Na verdade, é impossível não observar "Last Film Show" – centrado na amizade entre uma criança de uma pequena aldeia indiana e o projeccionista do cinema local – como uma versão de "Cinema Paraíso", actualizada para o público do século XXI. Ou que o longo monólogo de Toby Jones, o projeccionista do Empire Cinema em "Império da Luz", sobre a ilusão de óptica subjacente à fruição da imagem em movimento, mais não seja do que o necessário lembrete, junto de novas e futuras gerações, sobre as origens dos fenómenos audiovisuais que ocupam (e ocuparão) os seus quotidianos.