Publicado em 26 Mar. 2023 às 19:28, por Pedro Sesinando, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: O Espírito da Colmeia)
Reflexão crítica face ao presente pós-colonial francês, o mais recente filme de Albert Serra foge ao cliché do postal turístico para mostrar um delírio onde o passado flutua como um espectro.
A obra de Albert Serra, em especial se a concentrarmos no seu mais recente período francês, parece demonstrar uma atracção pela ilustração da decadência de figuras aristocráticas. Veja-se o caso de "A Morte de Luís XIV" - de título autoexplicativo, aliás - ou "Liberté", sobre uma orgia de aristocratas em fuga durante a revolução republicana.
O seu mais recente "Pacifiction – Tourment sur les îles" de alguma forma recupera esta verve de ruína fidalga encarnada na figura do alto comissário De Rolle, magistralmente interpretado por Benoît Magimel, uma espécie de liaison do estado francês no território ultramarino da Polinésia.
A introdução de De Rolle é, de resto, fundamental para o tom com que Serra embala a narrativa: De Rolle surge num clube nocturno, numa figura entre o caricatural e o mafioso, afável com os locais, mais digno de condescendência que de respeito. É relativamente assumido que De Rolle é um arquétipo da presença pós-colonial francesa no Tahiti, uma autoridade moribunda, entre o risível e o compassivo mas, sem dúvida, com total consciência da sua fragilidade enquanto figura institucional.
Serra joga com a ambiguidade da personagem para gerar um ambiente de paranoia de que o comissário tanto pode ser vítima como responsável.
Para tal, o realizador faz desfilar uma variedade de personagens em redor de De Rolle que ajudam a propagar a ideia de que algo conspirativo está a acontecer no arquipélago: uma guarnição da Marinha francesa que atraca pela calada da noite apenas para se deixar ver no clube nocturno frequentado por De Rolle, ou a frente independentista local que, reunida com o dignatário, se mostra preocupada com rumores de um possível regresso dos ensaios nucleares ao Tahiti.
Para ajudar ao tom enigmático, surge ainda um americano misterioso que passeia pela ilha parecendo sair directamente do cinema noir do pós-guerra.
Estas presenças, ligadas apenas pela figura de De Rolle, contribuem para um comportamento cada vez mais errático do comissário, que vai evoluindo gradualmente para uma figura quixotesca que ainda está na fase de procurar moinhos para combater.
Assentando a narrativa no Tahiti, Serra foge aos clichés do postal turístico idílico e constrói o pano de fundo adequado para mostrar uma forma de paraíso perdido que se conjuga perfeitamente com o delírio em que navega a personagem de De Rolle. Um lugar onde o passado colonial não existe, mas onde paira como um espectro.
Em entrevista ao Cahiers du Cinéma, em novembro passado, Serra falava dessa ambiguidade que vinha atrelada a filmar na Polinésia, permitindo-lhe ainda dar espaço às preocupações ecológicas sem risco de cair no infantilismo idealista de quem procura retratar as angústias ambientais a partir do conforto da urbe ocidental.
Ironicamente, é nesta variedade de preocupações que reside o grande pecado de "Pacifiction" – a forma como quer chegar a todo o lado sem realmente ir a fundo em nada, o que não deixa de parecer uma oportunidade perdida num filme de quase três horas.
De Rolle, pela empatia natural que gera, é uma excelente personagem, com complexidade e credibilidade suficientes para possibilitar uma reflexão crítica da França face ao seu presente pós-colonial, até de uma forma mais introspetiva que confrontacional. Mas parece subaproveitado, um cabotino à deriva no oceano na própria paranoia que procura por todos os meios manter intacta a impostura.