Publicado em 19 Oct. 2025 às 12:17, por Samuel Andrade, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: Síndrome do Vinagre)
Uma reflexão sobre filmes perdidos a propósito da exibição, na Cinemateca Portuguesa, do reencontrado "The Scarlet Drop".
Dos temas que habitualmente preenchem este espaço, poucos fascinam tanto como o conceito do filme perdido. Por cada obra da qual não se conhece o paradeiro de quaisquer materiais para a sua visualização - esta é, precisamente, a definição de filme perdido –, gera-se a curiosidade em torno do seu conteúdo e reside a expetativa que a mesma reapareça, "escondida" num arquivo fílmico, ou coleção privada, em condições de ser devidamente (re)descoberta.
O western "The Scarlet Drop" é um dos casos mais recentes de filme reencontrado. Realizado por John Ford em 1918, o filme esteve classificado como perdido durante mais de um século, até que uma cópia completa em película de nitrato, razoavelmente bem conservada, foi localizada no armazém de um colecionador de Santiago do Chile em novembro de 2024.
Esta descoberta é importante não só pela recuperação de um filme perdido, mas, sobretudo, por se tratar de uma produção de John Ford, cujo percurso na era do cinema mudo permanece maioritariamente desaparecido.
Entre 1917 e 1928, Ford está creditado como realizador de cerca de 60 títulos. Destes, atualmente, apenas sobrevive uma dezena – entre eles, "O Cavalo de Ferro" (1924), considerado como o primeiro grande filme do cineasta e obra pioneira do western enquanto género cinematográfico.
Face a este coletivo de filmes com paradeiro desconhecido e apesar da extensa bibliografia histórica e crítica dedicada ao realizador de "As Vinhas da Ira" (1940), "A Desaparecida" (1956), ou "O Homem Que Matou Liberty Valance" (1962), é seguro afirmar que ainda está por se fazer a avaliação completa da carreira de John Ford.
A possibilidade de conhecer os seus "anos formativos" em Hollywood permitiria, sem dúvida, novas e/ou reforçadas interpretações sobre os temas que animaram a carreira de Ford.
Essa perspetiva, aliás, é observável, por exemplo, em "Straight Shooting" (um dos seus primeiros filmes, preservado no George Eastman Museum e disponível no YouTube). Neste filme de 1917, e em pouco menos de uma hora de duração, encontram-se vários enquadramentos cénicos que Ford reproduziria, décadas mais tarde, em "A Paixão dos Fortes" (1946), ou "O Homem Tranquilo" (1952).
Pode-se dizer isto sobre John Ford, como também dos incontáveis filmes ainda considerados como perdidos. Contabilizá-los é tarefa quase impossível, as estimativas afirmam que "só sobrevivem 10% dos filmes americanos produzidos antes de 1929". Nenhuma geografia escapa a esta realidade (o cinema mudo português não é exceção) e ainda há redescobertas a fazer em várias filmografias de renome – Alfred Hitchcock, F.W. Murnau, Michael Curtiz...
Por estes motivos, a projeção do redescoberto "The Scarlet Drop", a 27 de outubro próximo na Cinemateca Portuguesa, deveria ser encarada como um dos eventos cinematográficos do ano no nosso país.
É uma experiência rara: poder ver em sala um filme desaparecido durante mais de um século, com acompanhamento ao piano, numa cópia digital que não esconde os danos que o tempo causou no suporte analógico e que preserva a tintagem original, técnica de colorização muito usada na era do mudo. Além de raro é um privilégio que a experiência de cinema em Portugal não costuma acolher.
Há menos um filme perdido no mundo; e quando tal sucede, o património cinematográfico, as preocupações em torno da preservação do cinema e a nossa cinefilia ficam mais completas.