Cartaz de cinema

"O Síndrome do Vinagre" por Samuel Andrade
Os "melhoramentos digitais" de filmes clássicos estão na moda – e não gostamos do resultado

Publicado em 5 Jun. 2020 às 14:31, por Samuel Andrade, em Opinião (Temas: Síndrome do Vinagre)

Os "melhoramentos digitais" de filmes clássicos estão na moda – e não gostamos do resultado

A opção de manipular filmes antigos com o fim de lhes acrescentar cor, ou "melhorar", está longe de ser pacífica.

O fenómeno da manipulação do aspeto de obras com várias décadas – nomeadamente, através da colorização de filmes a preto e branco, ou da conversão na "cadência" dos comuns 24 frames por segundo (fps) para versões em 60fps – não é de agora, nem nunca angariou particular devoção junto de espetadores e cinéfilos. Todavia, é uma realidade e as notícias recentes demonstram que está longe de "passar de moda".

Neste âmbito, tornou-se célebre (e infame) a tentativa pela Turner Entertainment Company de colorização do clássico de 1941 "O Mundo a Seus Pés", realizado por Orson Welles. Reações e polémicas semelhantes foram geradas pela aplicação desse processo a filmes como "Casablanca"  (original de 1941, colorização realizada em 1988), "A Noite dos Mortos-Vivos" (de 1968, colorização realizada em 1986), ou "Do Céu Caiu Uma Estrela" (1946, colorização realizada em 1989).

"A Noite dos Mortos Vivos", de George A. Romero (extrato manipulado)

 

"Casablanca", de Michael Curtiz (extrato manipulado)

 

"Do Céu Caiu Uma Estrela", de Frank Capra (extrato manipulado)

 

Apesar dos esforços de instituições a nível internacional – nos Estados Unidos, por exemplo, o National Film Preservation Act, promulgado em 1988, estipula que qualquer exibição deve mencionar o facto de se tratar de uma versão modificada do filme original –, certo é que aquela prática readquiriu ímpeto no começo do novo século, com iniciativas promovidas por estúdios como a Sony Entertainment ou a Legend Films, e impulsionada pelo progresso tecnológico e digital dos últimos anos.

They Shall Not Grow OldImagem promocional de "They Shall Not Grow Old", de Peter Jackson (fontes: Warner Bros. Pictures e Imperial War Museum)

 

Embora o tema parecesse estar latente, duas notícias recentes voltaram a colocar a colorização de filmes a preto e branco na ordem do dia.

O realizador Peter Jackson, no documentário "They Shall Not Grow Old", decidiu "renovar" uma série de arquivos fílmicos captados há mais de um século nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, não só através da sua colorização, como ainda converteu o filme para 60fps, adicionou-lhe efeitos sonoros e conjugou uma edição em 3D. Recebido entusiasticamente pela crítica especializada, "They Shall Not Grow Old" não acolheu consenso semelhante junto de historiadores e da comunidade arquivística, os quais salientaram as problemáticas estéticas e históricas (a que mais abaixo daremos realce) inerentes a uma produção deste género.

De modo semelhante, no princípio deste ano, Denis Shiryaev, um utilizador do YouTube, recorreu às designadas "redes neurais artificiais" para digitalizar, em resolução 4K, o emblemático "L'Arrivée d'un train en gare de La Ciotat", filmado pelos irmãos Lumière em 1895.

"L'Arrivée d'un train en gare de La Ciotat", dos Irmãos Lumière (extrato manipulado)

E, já esta semana, o Times of India noticiou o desenvolvimento de uma "experiência académica" de colorização do filme "O Lamento da Vereda", realizado por Satyajit Ray em 1955, e considerado uma das obras fundamentais do cinema indiano. Rodado originalmente em preto e branco e a 24fps, esta nova versão foi colorizada, e atualizada para 60 fps, por intermédio de um software de inteligência artificial capaz de analisar e "colorir" uma imagem sem cores. O fruto desse trabalho, partilhado no canal de YouTube de Aniket Bera, um dos rostos do projeto, fala por si.

"O Lamento da Vereda", de Satyajit Ray (extrato manipulado)

 

Questões e elefantes na sala

Face aos resultados visíveis destes "melhoramentos digitais", por que motivo se salientam, neste texto, os desafios éticos, históricos e artísticos de tais empreendimentos? De que forma estas versões afetam a experiência do espetador de cinema? E qual o impacto formal dessas decisões?

Como em qualquer trabalho artístico, o aspeto da sua forma final espelha as ferramentas ao dispor do seu criador. No caso do cinema, é imperativo relembrar que o filme colorido existe, praticamente, desde os primórdios da Sétima Arte – basta observar as experiências que George Méliés, ou  Erich von Stroheim fabricaram no início do Século XX.

"Le Royaume des Fées", de Georges Méliés

 

"Greed", de Erich von Stroheim

 

Logo, o facto de muitos cineastas, durante várias décadas, terem optado pela película a preto e branco não foi motivado por meras condicionantes económicas: existiu a concreta decisão de filmar nesses moldes, seja em prol da identificação visual de um género (por exemplo, os film noir norte-americanos das décadas de 40 e 50), ou como meio para instigar determinadas sensações na audiência (patente em muito do cinema de terror britânico produzido nos anos 60).

O mesmo se pode dizer dos raros momentos em que assistimos à estreia de um filme a preto e branco nos cinemas. Deixo, assim, a dúvida: considerariam ver "A Lista de Schindler" ou "Roma" que não naquele esquema cromático?

RomaFotograma de "Roma", filme de Alfonso Cuarón

Para além das vertentes estética e histórica do tema, subjaz a consideração pela aparência original de uma obra cinematográfica. Pois a colorização, mesmo que executada por simples curiosidade técnica, é o equivalente de observarmos a Mona Lisa emoldurada na horizontal, ou de acompanhar uma temporada inteira de "A Guerra dos Tronos" reduzida a tons de cinzento. Por essa lógica, o filme rodado a preto e branco deve ser exibido a preto e branco. Não por uma questão de purismo, mas porque independentemente do contexto geográfico e da faixa etária da sua plateia aquele é o modo fidedigno e apropriado de o visualizar.

Paralelamente a estas reticências, acontece ainda o risco de manipulação, de pura deturpação das circunstâncias e situações factuais que as imagens em movimento registaram ao longo dos tempos. Nesse sentido, basta observar a desvirtuação da realidade que tecnologias como os "deepfake", inteiramente sediadas em ambiente digital, são capazes de operar. Além disso, a colorização de arquivos documentais – como é o caso do filme de Peter Jackson – altera as imagens ao ponto de as converter em fotogramas repletos de efeitos visuais, sem aparente afinidade a pessoas verídicas nem a eventos efetivamente vivenciados.

Do Céu Caiu Uma Estrela
Fotograma da versão colorizada de "Do Céu Caiu Uma Estrela" (Fonte: Paramount)

Não obstante estes dilemas, tudo indica que a colorização veio para ficar: no artigo citado do Times of India, é explicado que aquela metodologia digital será futuramente aplicada a outras produções indianas e o seu código informático disponibilizado, para programadores ou curiosos, a médio prazo.

Mas os detratores destas experiências também não permanecem em silêncio. A propósito do que foi levado a cabo em "O Lamento da Vereda", cineastas indianos, como Premendu Bikas Chaki, já vocalizaram a sua apreensão, acrescentando que a estética original de um filme "é o que o torna eterno e ninguém tem o direito de alterar este facto".

Lawrence Napper, académico do King's College de Londres, apelida esta influência digital de "o elefante na sala". E, nas palavras de Luke McKernan, curador do arquivo fílmico da Biblioteca Britânica, em artigo publicado na Sight & Sound de abril de 2018 sobre o documentário "They Shall Not Grow Old", a colorização "de filmes de arquivo não nos aproxima dos nossos antepassados; aumenta a distância entre nós. Ameaça transformar o arquivo que herdámos de filmes da Primeira Guerra Mundial em material sem sentido, pois não conseguiremos mais vê-lo de forma compreensiva".

Assim, mais do que uma crítica às novas tecnologias do audiovisual, este texto pretende apelar, de forma substantiva e quase pedagógica, a que se encare o objeto do filme – seja ele remoto ou contemporâneo, de ficção ou documental, para miúdos ou graúdos – como algo a desfrutar não apenas pelo seu conteúdo, mas também por merecer que os seus valores estéticos, contextos temporais e intenções estéticas originais sejam devidamente salvaguardados.