Publicado em 23 Jan. 2021 às 17:23, por Samuel Andrade, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: Síndrome do Vinagre)
Uma mão-cheia de arquivos que recordam o nitrato, tão deslumbrante quanto inflamável, enquanto formato mítico na história da produção e exibição de cinema.
Desde as suas origens no Século XIX, passando pela invenção, por obra dos irmãos Lumière em 1895, do cinematógrafo, e culminando nos suportes digitais que hoje imperam, o cinema conheceu uma multitude de formatos de produção e distribuição, avanços tecnológicos dedicados ao melhoramento das condições de fixação das imagens em movimento e uma progressiva consciência em prol da preservação da Sétima Arte.
Nesse percurso histórico, nenhum outro suporte granjeou estatuto tão mítico quanto a película de nitrato. Fabricado a partir das instáveis propriedades químicas da nitrocelulose, e também apelidado de celuloide, o nitrato foi fundamental para a formação do hábito de "ir ao cinema", desde que começou a ser produzido pela Eastman Kodak, em 1889, até à sua gradual substituição pelo filme de acetato de celulose em 1951.
Entre esse período, a utilização da película de nitrato foi causa, pela sua queda para a combustão (por vezes espontânea e difícil de extinguir), de diversos incêndios em salas de exibição e arquivos fílmicos, do desaparecimento de títulos produzidos antes da introdução do cinema sonoro, de avultados danos materiais e de substancial perda de vidas humanas. Bons exemplos destes problemas encontram-se no incêndio na Cinemateca Portuguesa, em 1981, no arquivo da FOX, em 1937, e na tragédia da igreja de Dromcollogher, condado de Limerick, na Irlanda, em 1926, onde 48 pessoas morreram quando uma cópia em nitrato de "Os Dez Mandamentos", de Cecil B. DeMille, se incendiou.
Atualmente, e apesar do que se empreendeu na prevenção de incêndios, o nitrato não perdeu capacidade "intimidadora": a sua projeção está limitada a instituições museológicas e mediante o cumprimento de normas estabelecidas internacionalmente (por exemplo, pela própria Kodak), e a conservação de cópias em nitrato devem respeitar condições restritas – a Cinemateca Portuguesa, através do Arquivo Nacional das Imagens em Movimento (ANIM), mantém a coleção de nitrato num cofre subterrâneo construído propositadamente para esse fim e isolado do edifício principal.
Apesar destes perigos, o negativo da película de nitrato continua a ser encarado como o suporte fílmico que detém a imagem mais luminosa e a melhor taxa de contraste entre todos os formatos fabricados para exibição cinematográfica. Não por acaso, o encanto proporcionado por um filme em nitrato é reavivado anualmente pelo Nitrate Picture Show (festival de cinema organizado pelo George Eastman Museum) e tem servido de inspiração – e, sobretudo, matéria-prima – para autores como Bill Morrison (o seu filme "Decasia", de 2002, é inteiramente composto por excertos de filmes cuja emulsão apresenta a visível degradação causada pelo dito "síndrome do vinagre") ou Peter Delpeut ("Lyrical Nitrate", realizado em 1991, pode ser visto integralmente no YouTube).
O Arquivo desta semana propõe, assim, uma "viagem sentimental" pela forma como as imagens em movimento registaram o nitrato ao longo das décadas. Da sua produção até às mais trágicas consequências da sua deficitária preservação, seguem-se cinco arquivos dedicados à "bela e perigosa" película de nitrato.
Filme mudo sobre a produção de película de nitrato, durante a década de 1920, na fábrica da Kodak.
(fonte: Huntley Film Archives)
"Apesar das imagens apresentadas terem sido filmadas num estabelecimento costeiro, os mesmos princípios são aplicáveis a embarcações". Filme de instrução da Marinha norte-americana, datado dos anos 1940, sobre como manusear e, nessa eventualidade, dominar um fogo causado por película de nitrato.
(fonte: Huntley Film Archives)
Se tiverem 50 minutos livres, aproveitem esta sugestão, agregada pelo Texas Archive of the Moving Image: uma "coletânea", de filmes mudos norte-americanos, demonstrativa da deterioração que o nitrato pode sofrer.
Este breve filme, de autor desconhecido e produzido na década de 1970, invoca uma das características mais "infames" da película de nitrato: a rapidez, irreversibilidade e as consequências da sua combustão.
(fonte: Huntley Film Archives)
Em 2009, o Museum of Modern Art (MoMA), em Nova Iorque, e no âmbito da sétima edição do International Festival of Film Preservation, convidava-nos a visitar o seu arquivo de filmes em nitrato. De notar as diversas precauções, aqui descritas, em função da conservação eficaz e segura de obras cinematográficas neste suporte.
(fonte: Museum of Modern Art – MoMA)