Cartaz de cinema

"O Síndrome do Vinagre" por Samuel Andrade
"No princípio era o silêncio": uma carta de amor ao Cinema Mudo

Publicado em 1 Out. 2020 às 20:50, por Samuel Andrade, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: Síndrome do Vinagre)

"No princípio era o silêncio": uma carta de amor ao Cinema Mudo

Por ocasião da edição em streaming do festival Le Giornate del Cinema Muto 2020, revisitamos as qualidades e a relevância dos filmes produzidos antes do advento do sonoro.

Quando, em março de 1895, os irmãos Auguste e Louis Lumière apresentaram "La Sortie de l'usine Lumière à Lyon" à sociedade parisiense, não só concretizaram o empreendimento científico que os imortalizaria, como possibilitaram os primeiros passos de um dos períodos mais fascinantes da história do cinema: a era do filme mudo.

Até 1927 – habitualmente referido como o ano em que, por intermédio de "O Cantor de Jazz", nasceu o filme sonoro –, o cinema mudo foi decisivo para o estabelecimento de progressos técnicos e estéticos, de géneros e das diversas vertentes assumidas pela Sétima Arte até aos nossos dias.

"La Sortie de l'usine Lumière à Lyon"

De facto, e ao longo de sensivelmente três décadas, o filme mudo foi o "embrião" de todas as ferramentas artísticas, inovações tecnológicas e dinâmicas de popularidade que normalmente associamos ao cinema: da criação do star system (através do sucesso público de Charles Chaplin, Mary Pickford, Harold Lloyd, ou Lillian Gish) à adoção da montagem cinematográfica e do acompanhamento musical de um filme, da diversidade geográfica de produção (Hollywood, o cinema soviético, o expressionismo alemão, ...) às dinâmicas mercantis desta forma de expressão artística, sem esquecer que, com exceção das imagens geradas por computador, praticamente todos os efeitos visuais que hoje identificamos foram concebidos naquela época.

O fascínio da imagem

Die Büchse der Pandora

Num filme mudo, dada a "limitação" da ausência de som, a atenção do espectador detém-se, exclusiva e inevitavelmente, naquilo que a imagem formula em função da narrativa e/ou conteúdo temático. Descendente direto da fotografia, o cinema mudo estabeleceu, portanto, as suas próprias regras estéticas – incluindo a "bengala" dos intertítulos, presentes em muitos filmes deste período – enquanto veículo para novas formas de narrativa através da imagem em movimento.

Nesse sentido, e desde muito cedo, cineastas como D. W. Griffith, Charles Chaplin, Sergei Eisenstein, Dziga Vertov, F. W. Murnau, ou Georg Wilhelm Pabst não viram obstáculos nessa circunstância, mas sim o desafio e a oportunidade de elevar o cinema enquanto expressão artística singular e independente das outras artes.

Charlot Fotogénico

Ficaram célebres os esforços de pantomina de Charles Chaplin, em "Charlot Fotogénico" (1914), na construção de um protagonista que imediatamente se destacasse entre a multidão, ou as teorias de montagem definidas pelos realizadores soviéticos nas décadas de 1910 e 1920, sendo o denominado "Efeito Kuleshov" (a criação de narrativa pela justaposição de dois planos totalmente distintos) uma das suas mais influentes demonstrações.

Exemplificação do "Efeito Kuleshov"

Assim, o cinema mudo prima pelo fascínio da imagem que se projeta perante os nossos olhos, obrigando-nos a sondar o ecrã numa busca, (in)consciente e incessante, pelo sentido da história, pela compreensão de temas e motivos, e por uma técnica cinematográfica insubmissa a efeitos sonoros, ou acompanhamentos musicais.

Ao mesmo tempo, os filmes anteriores à introdução do sonoro evocam o cinema enquanto arte eminentemente visual, que extravasou a experiência sensorial da fotografia, ou da pintura, por via da expressividade dos seus intérpretes e pelo experimentalismo primordial que os realizadores imprimiram no celuloide. Até a própria componente "física" desta era potenciava essa realidade, uma vez que os fotogramas de um filme mudo, pela ausência de banda sonora, ocupam quase toda a dimensão de uma cópia em película!

Com o advento do sonoro – uma novidade que, refira-se, teve Chaplin como um dos seus mais veementes detratores, alguém que insistiu em filmar segundo os padrões do cinema mudo até aos anos 40 –, não é exagero afirmar que a Sétima Arte perdeu algum do poder de encanto que caracterizou as suas primeiras décadas. Hoje, a experiência sensorial do cinema não se faz sem som e música, mas a ascendência da produção ao longo dos séculos XX e XXI assenta nessa ilusão de óptica, projetada a 24 frames por segundo, que o cinema mudo dominou por inteiro.

O caso português

Os Crimes de Diogo Alves

No nosso país, as primeiras manifestações de cinema ocorreram quase em paralelo aos ensaios europeus e norte-americanos. Nesse âmbito, o empreendedorismo de Aurélio Paz dos Reis, um comerciante floricultor portuense, foi decisivo na implementação do que ficou conhecido como "O Cinematógrafo Português".

A primeira apresentação de imagens em movimento, no nosso país, ocorreu a 12 de novembro de 1896, com a exibição, no Teatro do Príncipe Real, de diversas curtas-metragens, entre as quais "Saída do Pessoal Operário da Fábrica Confiança", historicamente considerado como o primeiro filme português.

A obra de Paz dos Reis (da qual, infelizmente, pouco sobreviveu até aos nossos dias) foi ponto de partida para uma série de iniciativas privadas que visaram a fundação de uma indústria cinematográfica em Portugal.

A Invicta Film, a Portugália Film, ou a Caldevilla Film (que, em 1932, se converteria na Tobis Portuguesa), foram responsáveis pela produção de genuínas "pérolas" do período mudo, algumas das quais já editadas em DVD ou regularmente exibidas na Cinemateca Portuguesa:

"Os Crimes de Diogo Alves" (1911, de João Tavares), "Amor de Perdição" (1921, de Georges Pallu), "Mulheres da Beira" (1923, de Rino Lupo) e "Nazaré, Praia de Pescadores" (1929, de Leitão de Barros) são, apenas, alguns exemplos de um cinema mudo com mérito próprio e infundido de cariz lusitano.

Não será arrojado pensar que essas incursões pioneiras continuam a inspirar filmografias portuguesas, inclusive no nosso século. Basta observar "Tabu" (2012, de Miguel Gomes), ou o recém-estreado "O Ano da Morte de Ricardo Reis" (de João Botelho), para nos certificarmos de que o formalismo do cinema mudo ainda ecoa na produção nacional contemporânea.

A preservação e redescoberta do cinema mudo

The King of Kings

Para uma compreensão exaustiva deste contexto histórico, revela-se essencial abordarmos o estado de conservação do cinema mudo. De acordo com um estudo desenvolvido, em 2013, pela Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, estima-se que 70% dos títulos produzidos naquele país entre 1912 e 1929 estejam perdidos (isto é, filmes de que não se conhece o paradeiro de nenhuma cópia, seja ela física ou digital). Fruto de uma consciencialização tardia da necessidade de preservação, aliado ao facto de esses filmes terem sido rodados na frágil e altamente inflamável película de nitrato, a humanidade não tem, hoje em dia, a possibilidade de aceder a uma franja considerável das imagens em movimento daquele período.

É, sobretudo, por esse motivo que arquivos fílmicos e instituições museológicas dedicam atenção e recursos substanciais à preservação e restauro do cinema mudo. Neste processo de curadoria e redescoberta (caso o presente texto tenha aguçado a curiosidade), cabe salientar a edição do Festival de Pordenone – Le Giornate del Cinema Muto deste ano.

À semelhança do Il Cinema Ritrovato, no passado mês de agosto, o Festival de Pordenone também disponibiliza, de 3 a 10 de outubro, um conjunto limitado de títulos em streaming. Mediante subscrição com três modalidades de pagamento, será possível observar o restauro de filmes mudos oriundos de diversas latitudes, tanto de autores célebres (Cecil B. DeMille, Georg Wilhelm Pabst, ou Stan Laurel) como realizados por "ilustres desconhecidos" (o italiano Carlo Campogalliani, ou o grego Dimitrios Gaziades serão nomes a desvendar).

Embora nada substitua o ato de vislumbrar um filme em grande ecrã, iniciativas como esta relevam o mudo como algo mais do que momento experimental, tampouco "nota de rodapé", na história do cinema. Seja em ambiente de festival, numa sala da Cinemateca ou, simplesmente, online (muitos destes filmes estão em domínio público e, por essa razão, facilmente encontrados no YouTube), nunca será tarde para (re)descobrirmos o amor pelas "silenciosas origens" do cinema.