Cartaz de cinema

"Meat": redenção em terra alheia

Publicado em 12 May. 2025 às 17:49, por Pedro Sesinando, em Notícias de cinema, Opinião (Temas: O Espírito da Colmeia, Festivais de cinema, Cinema Europeu)

"Meat": redenção em terra alheia

Na sua primeira longa-metragem, o grego Dimitris Nakos surpreende ao transformar um improviso num dos momentos mais simbólicos do filme onde constrói uma poderosa alegoria sobre culpa, sacrifício e as dissonâncias morais que atravessam estruturas familiares e sociais.

Na conversa com a audiência após a exibição do seu filme "Meat" no IndieLisboa, referia Dimitris Nakos, a propósito de um plano em que um dos protagonistas, Christos, aparece a segurar um pequeno cordeiro, que tal plano não estava previsto no guião e que surgiu de um improviso do ator Kostas Nikouli, para uma cena em que a sua personagem se prepara para deixar a sua casa a fim de se sacrificar pela família que o acolheu.

O feliz acaso acabou por se tornar num dos planos mais simbólicos do filme, exatamente pela dimensão icónica que sugere e pela elevação messiânica de uma personagem que se presta a assumir os pecados dos seus semelhantes.

Na sua primeira longa-metragem, Nakos propõe desde logo um ensaio sobre o mecanismo intrínseco da culpa e da dissonância cognitiva que nos impele a fugir da responsabilidade, em particular quando estamos perante a inevitabilidade das consequências dos pecados cometidos.

Semiótica à parte, a história de "Meat" ("Kreas" no original) gira em torno de Christos, jovem imigrante albanês acolhido por uma família grega que, encabeçada pelo patriarca Takis, gere um negócio familiar onde, para além de Christos, também participam o seu filho Pavlos e a esposa Eleni.

A família vive numa pequena aldeia das montanhas e, para além da criação de animais, administra um talho que Takis idealizou e criou para garantir o futuro tanto de Pavlos como de Christos.

De facto, esta ideia de Takis enquanto provedor e decisor está presente em todas as interações familiares, associada implicitamente a uma incapacidade de Pavlos ser um adulto autónomo.

Através da relação de estatuto da família com as instituições e com os pequenos negócios da aldeia, Nakos mostra-nos as dinâmicas que compõem o frágil tecido social da comunidade, sustentado sobretudo por relações de oportunismo, ou por dependências financeiras.

De facto, estas dinâmicas locais alteram-se até ao ponto de rutura a partir do momento em que Takis é suspeito de ter assassinado alguém com quem, era do conhecimento geral, tinha uma disputa antiga. O crime, na verdade, cometido por Pavlos e testemunhado por Christos, não precipita apenas o desabar do estatuto da família perante a sua comunidade, mas também a harmonia interna em que viviam, levando a um novelo de más decisões que culminará na súplica feita pela família a Christos - (será a escolha do nome mais uma feliz coincidência?) - para expiar os pecados de Pavlos.

Aparte o subtexto óbvio, sobre a vulnerabilidade de um corpo estranho, um imigrante, perante uma comunidade que atua quase organicamente em prol da sua autopreservação, Nakos vai mais longe, abordando um fenómeno que, a julgar pelas palavras do próprio realizador, é comum no seio das famílias gregas: o alimentar de uma perversa, embora bem-intencionada, engrenagem familiar que procura evitar a todo o custo que os filhos possam sequer conceber o arbítrio e suas consequências para lá da esfera familiar.