Publicado em 16 Jan. 2025 às 20:11, por Samuel Andrade, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: Síndrome do Vinagre)
O novo filme de Pablo Larraín é o mais recente exemplo de "regalo visual analógico" a chegar às salas de cinema portuguesas.
Talvez soe a redutor, mas, cada vez mais, a minha positiva fruição do cinema revela-se de natureza caracteristicamente "dicotómica". Por um lado, seduz-me o filme imbuído de transcendência humana e criativa, ou cujo argumento demonstre a subtil ênfase de um subtexto em circunstâncias e ambientes que, a priori, não sugeriam ser o seu principal intuito; por outro, não obstante estruturas narrativas torpes, encontra-se a obra tecnicamente acima da média – montagem, sonoplastia e direção de fotografia incluídos –, sobretudo quando, numa indústria predominantemente digital(izada), a sua execução for regida por suportes e métodos analógicos com refletido propósito.
É nesta última categoria que "Maria", o novo filme de Pablo Larraín que estreia esta semana em Portugal, se integra.
Drama biográfico, muito focado na última semana de vida da cantora de ópera Maria Callas, com Angelina Jolie no principal papel, "Maria" evidencia a particularidade de ser rodado em filme de 35 mm, 16 mm e 8 mm.
Nos últimos anos, é-me difícil nomear outro título que tenha recorrido, em simultâneo, a estes três suportes a que se acrescenta uma "coletânea" de oito tipos diferentes de película Kodak (a cores, ou a preto e branco, com maior ou menor grão, contraste e densidade, etc.) e formatos de imagem (também denominados de aspect ratio) ao longo dos seus 120 minutos.
Estas opções técnicas de Larraín, e do diretor de fotografia Ed Lachman, são mais do que meras manifestações de virtuosismo técnico e visual. Para tal aceção, é essencial salientar como a biografia, carreira e relações afetivas de Maria Callas foram ditadas por frequente assédio mediático.
Com singular elegância física, mas senhora de espírito quase irascível – uma "diva", na literal e nem sempre cordial definição do termo –, protagonista de uma escandalosa relação com o milionário grego Aristóteles Onassis, e detentora de indelével sucesso comercial e crítico enquanto intérprete lírica, o percurso de Callas ficou, no seio da opinião pública, ditado pelas imagens em movimento que dela se capturou.
O agregado dessas filmagens – desde as gravações dos seus concertos nas principais casas de ópera, passando por boletins noticiosos e até aos home movies da soprano – configuram a iconicidade de Maria Callas, e, apropriadamente, conheceram transposição para o conteúdo formal de "Maria".
Aqui observamos as adaptáveis qualidades da película de Super 16, reminiscente dos filmes de fait divers jornalísticos que sobre ela se produziram; o pequeno e doméstico suporte do 8 mm – na sua conversão para projeção digital, até se preservou o espaço da perfuração na extremidade da película... – para sequências de intimidade sentimental; e o glorioso 35mm, tão operático, granuloso e majestoso como a individualidade de Maria Callas.
Enquanto espectador, "Maria" não suscita grande envolvência emocional, nem mesmo perante uma Angelina Jolie tão "disciplinada" como há muito não a víamos – talvez desde "A Troca", realizado por Clint Eastwood em 2008. Contudo, nunca consegui desviar os olhos da qualidade e textura analógicas do novo trabalho de Larraín: o mais recente exemplo de "regalo visual" a chegar às salas de cinema portuguesas.
Neste contexto técnico, apenas há a lamentar que, paralelamente aos "gélidos" digital cinema packages usados na distribuição comercial do filme, não se tenham produzido cópias em película de 35mm para exibição. Que magnífica projeção seria!