Publicado em 26 Out. 2023 às 10:36, por Pedro Sesinando, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: O Espírito da Colmeia)
O documentarista e escritor Mark Cousins centra-se na Itália de inícios do século XX para analisar as origens das ditaduras europeias do século XX e o uso do cinema como ferramenta de propaganda.
A Itália do pós-Primeira Guerra Mundial era uma nação traumatizada, ferida na sua autoestima pelas recentes humilhações das batalhas de Caporetto e do Piave, e mergulhada numa depressão económica e social, seguramente agudizada por uma certa nostalgia latente dos tempos imperiais.
Com o privilégio do distanciamento histórico, parece fácil constatar que o terreno era fértil para o surgimento de homens providenciais que levantassem o espírito da nação com promessas de a tornar, de novo, grande. A referência ao slogan de Trump não é inocente, já que "Marcha Sobre Roma", ensaio documental de Mark Cousins, abre precisamente com o antigo presidente dos EUA a citar o tal homem providencial, Benito Mussolini, ideólogo e operacional do fascismo.
Após estabelecer-se inicialmente nas regiões do vale do Pó e da Romanha, através da formação de brigadas paramilitares que faziam uso de violência indiscriminada para intimidar e eliminar os adversários políticos, o fascismo idealizado por Mussolini decide tomar o país, mobilizando os seus camisas negras para marchar sobre Roma. O resto é História: o governo, já fragilizado, caiu após o primeiro-ministro Luigi Facta ver recusados pelo Rei Victor Emanuel os pedidos para decretar o estado de sítio. O poder acabaria por ser entregue pelo monarca ao autoproclamado Duce, Benito Mussolini.
Cousins aborda o episódio da Marcha fascista como forma de contextualizar o papel do Cinema, à época uma ferramenta de propaganda ainda recente, e de como o fascismo italiano foi percursor nesta instrumentalização. Para tal, Cousins disseca o filme propagandista de Umberto Paradisi, "A Noi!", que acompanhou a Marcha fascista sobre Roma, explorando os subterfúgios técnicos aplicados pelo realizador para sobrestimar a dimensão da Marcha e evocar a presença quase espectral de Mussolini. De facto, Mussolini é apresentado no filme de Paradisi – e, consequentemente, a toda a Itália - através de um fantasmagórico close-up, evocativo de Murnau, sendo omitido o facto de que o líder só se deslocou a Roma quando percebeu que a marcha seria um sucesso.
Na construção da sua figura política, Mussolini teve sempre presente o poder da teatralidade e, nesse sentido, o filme de Paradisi foi uma das fundações sobre as quais se criou o mito do homem que recuperaria o orgulho da Itália próspera e imperial. De resto, pela forma como sugere mais do que expõe, "A Noi!" serviria posteriormente de modelo propagandístico a outros regimes em latitudes não muito distantes como Espanha e Alemanha.
No seu estilo característico de "colagem" documental, Cousins intercala imagens contemporâneas e de arquivo narradas pelo próprio realizador, com intervenções esporádicas de uma personagem anónima, interpretada por Alba Rohrwacher, que parece representar as variações de estado de espírito da classe trabalhadora italiana face à ascensão, consolidação e queda do fascismo.
Estas intervenções contribuem para uma perda de foco de um filme que se torna mais interessante quando se mantém no que aparenta ser o seu motivo principal: o poder da imagem na manipulação das massas para o qual o exemplo do fascismo italiano é paradigmático. Pode, no entanto, entender-se a opção de Cousins de desanuviar o ambiente e ampliar o espectro para vermos uma Itália que existia para lá da ascensão do fascismo, chamando a si, entre outros, "Una Giornata Particolare", o clássico de Ettore Scola cuja ação decorre no dia que Hitler visita Mussolini em Roma.
De entre o tanto que tem, o filme de Scola diz-nos que em épocas tenebrosas até a mera sobrevivência pode ser um ato de resistência. Na sua "Marcha sobre Roma", Cousins tem, também ele, o seu acto pessoal de resistência: o canto da sereia, a voz de Mussolini, não é ouvida uma única vez durante todo o filme.
Estreia nos cinemas portugueses a 26 de outubro 2023.