Publicado em 17 Out. 2021 às 12:08, por Pedro Sesinando, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: O Espírito da Colmeia)
Existe uma subtil ligação entre Joseph Losey, o cineasta americano refugiado na Europa a partir dos anos de 1950 para fugir à lista negra do senador McCarthy, e o dramaturgo Aristófanes da Grécia clássica.
Na sua célebre peça "Lisístrata", Aristófanes sugere uma farsa em que a protagonista, Lisístrata precisamente, se propõe a terminar a Guerra do Peloponeso incitando todas as mulheres afectadas pelo conflito a impor um boicote aos privilégios sexuais de maridos e amantes com o propósito de os levar a negociar a paz. Embora fosse improvável que Aristófanes, tal como os autores da sua época, tivesse grandes preocupações feministas ou sequer pacifistas ao redigir o texto, é inevitável pensar no subtexto de resistência e coragem que a própria premissa da peça propõe.
Também não parece provável que Joseph Losey tenha tido Aristófanes em mente quando, em 1962, adaptou "Eva" de James Hadley Chase para o cinema. E, no entanto, ao ver o filme, foi impossível não traçar um paralelismo entre Eva, a protagonista interpretada por Jeanne Moreau, e Lisístrata. É verdade que a Eva de Losey não é inicialmente apresentada com as virtudes de uma resistente corajosa, mas como uma mulher oportunista que subsiste à conta do efeito que provoca nos homens, sobretudo em Tyvian, a personagem de Stanley Baker, escritor em franca consagração cujo primeiro romance está em vias de ser adaptado ao cinema.
Para além de genial e carismático, Tyvian tem ainda a virtude de estar noivo de Francesca (Virna Lisi), personagem que Losey não hesita em unidimensionar, se tal termo existe, para a tornar numa espécie de reflexo invertido de Eva. Francesca é reservada e educada e, acima de tudo, subserviente a Tyvian. Embora de início se adivinhe em Tyvian uma faceta menos luminosa do que é dado ver, tal é confirmado quando Eva entra em cena. A obsessão de Tyvian por Eva precipita-o para uma decadência que não se reflete apenas na relação com Francesca. Tyvian revela-se também um impostor enquanto romancista. Toda a persona que construiu, que lhe permitiu entrar na elite de Veneza como escritor prodígio que contrariou o fatalismo das suas origens humildes, cai por terra por acção de uma mulher que, para o conseguir, apenas teve de lhe resistir. De o negar. Como Lisístrata.
Losey não opta por uma total redenção da personagem de Eva, mas fica evidente que esta tem um código moral mais robusto que Tyvian. Uma prova é a diferença de empatia que um e outro mostram perante Francesca, personagem claramente construída para ser a vítima emocional do filme. Eva evolui também para um retrato de mulher forte e decidida. Uma sobrevivente que entra no jogo sem se subjugar.
Não faltam considerações e análises à obra de Joseph Losey que lhe granjearam a fama de cineasta misógino. Os defensores desta tese têm um bom argumento com a personagem de Francesca e, até certo ponto, da própria Eva. No entanto, a personagem de Tyvian contraria esta ideia, já que o filme parece estruturado de forma a expor as suas fraquezas. E é na sua transformação ao longo da narrativa que reside a complexidade do filme. De certa forma, a personagem de Eva é mais instrumental que protagonista. Eva vê Tyvian para lá da sua máscara social, sendo apenas acompanhada por Sergio, o realizador, nessa percepção. Mas Sergio é o pretendente de Francesa, preterido em favor de Tyvian, e tem por ele um ressentimento indisfarçável embora digno. No fim, Losey nega qualquer forma de justiça a Sergio, mas parece não ter resistido à ironia, se é que deliberada, de ver Tyvian prostrado perante uma mulher.