Cartaz de cinema

"O Síndrome do Vinagre" por Samuel Andrade
Il Cinema Ritrovato e a cinefilia renovada

Publicado em 3 Jul. 2025 às 23:03, por Samuel Andrade, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: Síndrome do Vinagre)

Il Cinema Ritrovato e a cinefilia renovada

Chamam-lhe "o paraíso dos cinéfilos". À beira das 40 edições, o festival de Bolonha dedicado à história do cinema comprova que o slogan é tudo menos uma hipérbole.

Sob o característico e indomável calor de junho em Bolonha, o 39.º Cinema Ritrovato demonstrou, uma vez mais, porque é o tipo de festival de cinema que mais me agrada.

Sem alinhar nas dinâmicas das competições oficiais (há uma entrega de prémios, mas sem sombra de disputa) nem nas antestreias com passadeira vermelha (embora haja espaço para encontros com cineastas) o Cinema Ritrovato redefine, a cada ano, o termo "comunidade" aplicado à cinefilia.

Entre os profissionais de arquivos fílmicos, entusiastas pela descoberta das histórias menos divulgadas da Sétima Arte e espectadores com particulares interesses que visitaram Bolonha, a sensação permanente é a de que todos falam a mesma língua; um "idioma" sediado nas variadas manifestações de cinefilia, na paixão pela experiência social e humana (a referida "comunidade") do cinema em sala e numa compulsiva partilha de afetos e conhecimentos cinematográficos.

Neste contexto, por exemplo, nunca é de admirar que a apresentação de um filme, antes da projeção, se centre mais em factos históricos e nos detalhes técnicos de produção e restauro do que em laboriosas considerações críticas sobre a obra.

Sublinhe-se: o Cinema Ritrovato é um evento de (re)descoberta, uma ocasião para observar títulos realizados há décadas como se de uma estreia se tratasse.

Assim foi também a minha experiência no festival deste ano. Ficam as memórias do que assisti antes, durante e depois das sessões de cinema.

Flicka och Hyacinter

Segui, com algum afinco, o programa dedicado ao cinema noir escandinavo das décadas de 40 e 50, com destaque para o sublime "Flicka och Hyacinter", de Hasse Ekman, a história do mistério em torno do suicídio de uma jovem escritora – exibido numa ótima cópia em 35mm!; ou o surpreendente "To Minutter for Sent", do dinamarquês Torben Anton Svendsen, que acompanha a investigação que se segue ao assassinato de uma jovem num antiquário.

Acompanhei as "dores" do projecionista com uma cópia em película de 16mm, durante a exibição do documentário musical "Right On!", um registo vibrante e cru da poesia performativa dos The Last Poets nas ruas do Harlem; e pressenti a carga emocional da apresentação, numa Piazza Maggiore à pinha, da versão restaurada de "A Quimera do Ouro", de Charles Chaplin – o momento em que a praça inteira aplaudiu, entusiasticamente, a famosa sequência da dança dos pães, reavivou a crença de que o cinema pode mesmo "lavar a alma".

O ponto alto da minha experiência no festival, contudo, veio de 1905, com cinema na sua forma mais pura. Na Piazzetta Pier Paolo Pasolini (um ilustre nativo de Bolonha), a partir de um projetor com lâmpada de arco de carbono, foram exibidas dez curtas-metragens oriundas de uma coleção privada redescoberta em 1985, acompanhadas por música ao vivo. Uma sessão em que, inevitavelmente, o projecionista (Nikolaus Wostry, responsável pelas coleções do Filmarchiv Austria) acabou por ser a vedeta. Não só pela destreza aos comandos de uma impressionante Imperator, como pela habilidade em fornecer conteúdo histórico sobre o formato e convidar os espectadores a observarem de perto a máquina de projeção.

Restauro de Sétima Arte, comunidade cinéfila renovada, a convicção que o cinema clássico, em todas as suas expressões, resistirá ao progresso tecnológico... Ao Il Cinema Ritrovato, chamam-lhe "o paraíso dos cinéfilos" – e a 39.ª edição comprovou que o slogan do festival já é tudo menos uma hipérbole.

Foto: Samuel Andrade