Publicado em 17 Feb. 2025 às 17:25, por Pedro Sesinando, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: O Espírito da Colmeia, Cinema Europeu)
Na estética despojada e na ausência de diálogos, "Flow - À Deriva" encontra o seu maior trunfo para mostrar uma experiência sobre medo, sobrevivência e a inevitável fragilidade da vida face à natureza.
Obriga a honestidade a confessar que a impressão causada pelos primeiros instantes de "Flow - À Deriva", segunda longa-metragem do letão Gints Zilbalodis, é a de uma experiência visual pouco apelativa, entre o rudimentar e o anacrónico, mais evocativa de um universo de jogos de computador dos anos 90 que de uma ideia construída da animação tal como nos chega atualmente, por sala, ou através de operadores de streaming.
Passada a estranheza inicial, que denuncia um preconceito de espectador viciado no confortável hiper-realismo da animação corrente, entende-se que dessa renúncia à sofisticação visual vem muito do apelo do filme e do vínculo emocional que a audiência constrói com as personagens.
É, ainda assim, na simplicidade da narrativa que "Flow" de facto floresce, seguindo a epopeia de um gato que começa por vaguear despreocupadamente por um mundo aparentemente desprovido de humanos, até ser surpreendido por uma rápida subida das águas.
A partir deste evento de contorno catastrófico, o filme parte para uma fórmula de road-movie, à falta de melhor expressão, em que o felino protagonista e diversos animais que as circunstâncias juntaram numa pequena embarcação, são empurrados pela corrente das águas através de um mundo pós-apocalíptico, marcado pela pegada antropomorfa que se manifesta pelas ruínas de edifícios e de majestosas construções agora abandonadas e parcialmente submersas.
Para além da óbvia dimensão ambientalista do filme, onde não é necessário um excelso poder de dedução para subentender um ralhete à humanidade devido à lógica predatória na sua relação com a natureza, "Flow" explora a ideia da sobrevivência enquanto ato instinto, ou a preservação sustentada pelo medo enquanto motivador primário.
De facto, o gato é, antes de tudo, movido pela hidrofobia, tomando decisões e formando alianças em função desta característica por cima de outras ameaças que enfrenta, incluindo a convivência com os outros animais.
A ideia do medo é habilmente veiculada por meio de longos planos sequência e complementada pela feliz ideia de manter o filme destituído de diálogo, opções que contribuem para submeter o auditório ao ponto de vista do gato e destacar a forma como este se encontra à mercê da natureza, sem outro objetivo que não o de chegar ao ponto mais alto, onde a água não o atinja.
Ao longo de pouco menos de hora e meia de duração, o filme de Zolbalidis não só deixa algo que processar como também alguns vazios por preencher, absorvendo de tal forma o espectador que este rapidamente esquece aquela estranha primeira impressão.
A produção de "Flow – À Deriva" começou em 2019 e durou cinco anos e meio. Realizado com software gratuito de código aberto e um orçamento de apenas 3,5 milhões de euros, estreou na secção Un Certain Regard do Festival de Cannes, recebeu os prémios do júri e do público no Festival de Annecy, e ganhou a sua categoria nos prémios europeus de cinema.
Nos Estados Unidos, recebeu o Globo de Ouro para o melhor filme de animação, venceu dois Annie Awards e está nomeado para os Óscares nas importantes categorias de melhor filme internacional e melhor longa-metragem animada.
"Flow – À Deriva" estreia esta semana nos cinemas portugueses.