Publicado em 25 Nov. 2024 às 21:02, por Pedro Sesinando, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: O Espírito da Colmeia, Festivais de cinema)
Concebida como um retiro de inspiração funcionalista, a villa E.1027 tornou-se palco de rivalidades entre Eileen Gray, Jean Badovici e Le Corbusier. O documentário "E.1027 - Eileen Gray and the house by the sea", em exibição no Porto/Post/Doc, explora este triângulo de tensões e a polémica intervenção na obra que marcou a arquitetura moderna.
Poucas obras se podem orgulhar de incluir no currículo uma profanação executada pelas mesmíssimas mãos de Le Corbusier, nome comummente associado a ações bem mais lisonjeiras no que a edificações diz respeito, mas a villa batizada como E.1027, construída no final dos anos 20 numa encosta remota da Côte D'Azur, pode fazer gala desse particular.
Embora lhe seja atribuída, e justamente, a autoria como uma colaboração entre o casal Eileen Gray e Jean Badovici, a casa nasce da inspiração de Gray, até então conhecida fundamentalmente pelo seu trabalho enquanto designer de mobiliário e interiores, e de uma filosofia que esta pretendia explorar a partir dos cânones funcionalistas da arquitetura moderna, movimento que tinha entre os nomes mais ilustres um fulgorante Le Corbusier, ao qual Badovici devotava uma admiração quase religiosa.
A filosofia de Gray passava por uma noção da construção enquanto uma extensão das necessidades e aspirações do ser humano, com um foco muito particular no interior e, obviamente, no desenho do mobiliário. Pelo menos é o que se pode concluir das suas palavras na publicação "L"Architecture Vivante", gerida pelo próprio Baldovici e, naturalmente, com uma linha editorial próxima do movimento da arquitetura moderna.
A retórica de Gray viu a sua execução prática no desenho e construção da E.1027, que a arquiteta irlandesa pretendia usar como um refúgio onde se poderia entregar em paz ao vício do trabalho, na companhia de Badovici. A casa rapidamente ganhou estatuto entre a comunidade artística da altura, gerando alguma iconografia dentro da arquitetura moderna, mas, no curto prazo, não satisfaria Gray, que abandonaria a casa pouco tempo depois, deixando-a entregue a Jean Badovici e Jean Badovici entregue a si mesmo.
Serve esta longa introdução para apresentar "E.1027 - Eileen Gray and the house by the sea", de Beatrice Minger e Christoph Schaub que o Porto/Post/Doc apresenta na edição deste ano.
Entre o documentário e a ficção, numa estrutura que harmoniza a encenação teatral e a estética das reportagens de reconstituição histórica, o filme é conduzido pela voz interior de Eileen Gray, focando-se nos tumultos da relação intelectual entre Gray, Badovici e Le Corbusier, onde a E.1027 (também conhecida pelo mais poético "maison en bord de mer") funcionará como o gatilho da discórdia.
Para tal, Minger e Schaub contaram com a vantagem inestimável de filmar dentro da própria villa, um espaço que esteticamente é o sonho de qualquer cinematógrafo e que projecta perfeitamente a gravitas do que entendemos do pensamento artístico de Eileen Gray tal como nos é apresentado durante a narração.
O filme não esconde as suas intenções, não perdendo o ancoramento em Eileen Gray mesmo quando a ação se foca na relação entre Badovici e Le Corbusier.
Na verdade, embora longe de uma estrutura clássica, a história embala rapidamente para uma suavizada versão da narrativa de herói contra vilão - Gray contra Le Corbusier - com uma vítima inocente atingida pelo desenrolar das circunstâncias, Badovici. Um policial onde o motivo é o despeito e o crime é a profanação da obra – que na realidade consistiu em Le Corbusier ter pintados uns frescos em duas das paredes nuas da E.1027, conceito esse que exasperava o arquiteto francês.
Minger e Schaub conseguem-no sem terem de se afastar em grande parte dos relatos já conhecidos, tentando, com a voz de Gray, levantar questões para um subentendimento para lá do superficial.
Que Le Corbusier tenha visto as suas ideias servirem de base para um projeto que seria unanimemente aplaudido pelos seus pares, mas sem ter a parte de reconhecimento a que se achava devido, amesquinhou-o ao ponto de querer deixar uma marca indelével na obra? Que esse abalo tenha sido provocado por alguém que executara com tal êxito o seu primeiro projeto arquitetónico? Que esse alguém fosse mulher?
A fazer fé no relato de Minger e Schaub, tais perguntas são puramente retóricas.
O Porto/Post/Doc, está a decorrer na cidade do Porto até 30 de novembro.