Publicado em 10 Dez. 2023 às 12:38, por Pedro Sesinando, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: O Espírito da Colmeia)
A obra mais recente de Christian Petztold prossegue a viagem do realizador pelos quatro elementos. Após a água de "Undine", surge o fogo numa história de personagens inseguras, um filme de verão a lembrar Rohmer.
Se há ideia que, desde logo, salta à vista quando comparamos "Céu em Chamas", o último trabalho de Christian Petztold, com os seus mais recentes antecessores é que assenta sobre um espírito marcadamente naturalista por oposição ao flirt entre o onírico e o distópico no qual o cineasta alemão se suportou para evocar a inadaptação das suas personagens, comprovável em "Em Trânsito" e "Undine", para limitarmos o universo de análise. No entanto, também "Céu em Chamas" é um filme de inadaptados e, seguramente, de personagens.
O filme orbita em redor de Leon, jovem escritor a braços com uma crise de inspiração que o impede de avançar com o aguardado segundo livro. Numa tentativa de ultrapassar o bloqueio criativo, Leon retira-se com o seu amigo Felix para a casa de férias da mãe deste último, também ele impelido pela necessidade de construir o seu portefólio fotográfico. Uma vez chegados à casa, os dois são surpreendidos pela presença de Nadja, sobrinha de uma amiga da mãe de Felix, que ali se encontra a passar férias.
Conduzindo a narrativa até este ponto e acrescentando Devid, namoro de verão de Nadja, Petztold constrói uma escala de produção rohmeriana e cria uma dinâmica de grupo que lhe permite expor todos os preconceitos e inseguranças de Leon que, para lá da inata arrogância pueril, vive em necessidade constante de validação.
Quando confrontado com a aparente facilidade com que as pessoas ao seu redor ultrapassam os seus problemas criativos, a reação de Leon é hostilizá-los, numa tentativa infantil de canalizar a sua própria frustração. Talvez seja esta óbvia insegurança de Leon, protagonizado por um sólido Thomas Schubert, que permita que a personagem nunca nos seja totalmente antipática. Em qualquer gesto ou conversa desagradável, mesmo na forma como se dá ao trabalho de parecer ocupado, Leon transmite a ideia de fragilidade, que intuímos justificada por uma personalidade vincada por experiências passadas que abalaram a sua autoestima. Não é de todo estranho que acabemos a torcer pela sua regeneração.
Esse processo de melhoramento em curso acaba por cair nas mãos de Nadja, interpretada por Paula Beer, igualmente objeto de fascínio e desdém por parte de Leon. De resto, a introdução de Nadja é feita através de subtis desencontros e vestígios da sua presença, desde uma cozinha por arrumar até aos sons que atravessam as paredes e denunciam a intimidade entre Nadja e Devid, levando Leon a especular sobre o tipo de pessoa que Nadja seria.
Se o fascínio que Nadja exerce sobre Leon pode explicar porque este se deixou gradualmente mudar pela ação dela, as razões desta parecem sempre mais altruístas. Não com particular originalidade, Petztold reserva a Nadja o papel de bússola moral de Leon, recusando alimentar-lhe a autocomiseração ao confrontá-lo com a falta de qualidade do rascunho de livro em que está a trabalhar.
A Nadja está também reservado o twist essencial da narrativa quando, em conversa com Helmut, o editor de Leon, esta acaba por mostrar ao grupo uma intelectualidade que mantinha até então escondida e precisamente na área em que Leon se ancorava para se sentir superior a Nadja.
Esta revelação provoca a previsível regressão de Leon à primordial hostilidade e ajuda Petztold a conduzir-nos ao que parece ser o motivo essencial de "Céu em Chamas" - o exílio a que se impõe um sujeito durante o processo criativo ao considerar que criar sobre a vida e vivê-la são conceitos exclusivos. Petztold prova este ponto de forma particularmente brusca, já que a estagnação criativa de Leon é ultrapassada na resposta à tragédia reservada no final do filme. A vida e arte como conceitos fatalistas.