Publicado em 26 Jun. 2022 às 13:18, por Pedro Sesinando, em Notícias de cinema (Temas: O Espírito da Colmeia)
Filme premiado em Cannes, "Le Meraviglie" acompanha as perturbações na rotina de uma família de apicultores da Toscana.
Ao apresentar "Le Meraviglie" na edição 2014 do Festival de Cannes, Alice Rohrwacher começou por desmentir a mais óbvia das conclusões – que a sua segunda longa metragem não é um filme autobiográfico. Afinal, um breve olhar pela biografia da realizadora italiana, que cresceu na província toscana, filha de uma italiana e de um apicultor alemão, levava-nos rapidamente a essa assunção.
Embora seja seguro afirmar que a infância de Rohrwacher tenha servido de inspiração a alguns apontamentos do filme, também é verdade que um olhar mais cuidado sobre "Le Meraviglie" (que em Portugal estreou com o título "O País das Maravilhas") pode levar a considerar demasiado simplista a ideia clássica de filme-memória. De facto, Rohrwacher conduz uma espécie de fábula rústica, com introduções pelo realismo mágico, opondo a agressividade do mundo rural com o glamour, neste caso algo provinciano, da televisão.
Logo nos primeiros minutos, Rohrwacher define não só as dinâmicas familiares como o próprio tom que irá embalar o filme. Na primeira cena, a câmara percorre o espaço da casa onde a família dorme, iluminada apenas pelos focos dos carros que se atravessam no exterior.
Os planos são invasivos, fechados, acompanham os membros da família nos seus esgares faciais, nos diálogos sussurrados, nas idas à casa de banho. Em suma, expondo toda a sua intimidade.
Gelsomina, a filha mais velha, toma o centro da narrativa. Através desta personagem, brilhantemente interpretada por Maria Alexandra Lungu, Rohrwacher não renega uma certa ideia coming-of-age – Gelsomina vive o clássico dilema entre o dever de ajudar no negócio da família e a urgência latente por iniciar uma viagem de autodescoberta e de como fazê-lo conciliando as oscilações tirânicas do patriarca Wolfgang.
Dois eventos contribuirão para a emancipação de Gelsomina: a presença na região de um programa de televisão em que Gelsomina pretende inscrever a família e a chegada de Martin, um jovem com um passado de delinquência, tal como nos é dado a intuir, acolhido pela família como parte de um processo de reabilitação embora, na verdade, seja apenas um pretexto que permite a Wolfgang ter mais braços para explorar.
Martin será o aliado de Gelsomina na fuga à esfera familiar, a representação do mundo novo. De resto, embora seja dado ênfase às inquietações de Gelsomina, é a personagem de Wolfgang, interpretado por Sam Louwyck, que faz girar "Le Meraviglie".
É o mundo idealizado por Wolfgang que está em perigo de ruir através dos idílios de Gelsomina, o único membro da família que arrisca as explosões do chefe de família. Consequentemente, é também Wolfgang que vive o maior conflito interno, ao aperceber-se que o universo estanque que criou tem vulnerabilidades e que o apelo do mundo exterior é demasiado forte para evitar que ele próprio conceda nas suas intransigências. A derrota emocional de Wolfgang consuma-se precisamente quando, após forte oposição à sugestão de Gelsomina, decide conceder e apresentar-se no programa televisivo.
Candidato à Palma de Ouro, "Le Meraviglie" arrebatou o Grande Prémio em Cannes e confirmou a singularidade de Alice Rohrwacher no panorama do cinema italiano.
Para lá do foco na dinâmica familiar e na viagem de Gelsomina, há em "Le Meraviglie" um subtexto bastante interessante e representado pela presença na região do programa de televisão cujo slogan sugere a divulgação de produtos regionais e preservação cultural. A ideia perversa de que o mundo urbano e civilizado acorre de forma a salvar os traços históricos e tradicionais com uma perspectiva museológica, inerte, em que a vida em volta é sacrificada em detrimento de uma lógica de turismo.