Publicado em 20 Ago. 2023 às 11:13, por Samuel Andrade, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: Síndrome do Vinagre)
Um filme desconhecido da década de 1960 é capaz de reacender as relações entre preservação, pirataria e exibição de cinema.
Para quem respira cinema, há poucas sensações tão satisfatórias como a de achar uma "pérola cinematográfica", aquele filme obscuro em que o passar dos anos não deixou marca histórica substancial, o título sobre o qual temos pouca informação ou que, aparentemente, conheceu apenas uma efémera existência.
Recentemente pude usufruir dessa experiência por intermédio de um filme com o sugestivo título "Captain Celluloid vs. the Film Pirates" (creio ser dispensável a tradução), que, em forma e conteúdo, apelou inteiramente às obsessões que guiam os meus gostos cinéfilos e, reciprocamente, os temas debitados em "Síndrome do Vinagre".
Produção a todos os níveis amadora de 1966, "Captain Celluloid vs. the Film Pirates" foi rodado ao longo de uma década em película de 16mm a preto e branco. Combina ficção-científica e comédia slapstick e surge realizado por um desconhecido Louis McMahon (para este nome, no IMDB, apenas surgem créditos adicionais como diretor de fotografia em três títulos, onde se inclui o polémico "I Spit on Your Grave", de 1978), mas, observando o filme, ninguém adivinharia o seu calibre não profissional.
Através de uma evidente homenagem aos film serials norte-americanos, muito em voga nas décadas de 1930 e 1940, assim como aos mecanismos narrativos do cinema mudo, patentes na aparição de intertítulos e na exagerada atuação dos atores, "Captain Celluloid vs. the Film Pirates" traça as aventuras do denominado Captain Celluloid – um misto de Robin dos Bosques e proto-Watchmen – face às intenções do vilão The Master Duper (literalmente, O Mestre Duplicador) em copiar ilegalmente os negativos de todos os clássicos do cinema americano, por meio de uma sofisticada máquina capaz de duplicar bobines de filme em pouco segundos,
Dividido em quatro capítulos – a saber, "O Mestre Duplicador Ataca", "A Fúria do Nitrato", "O Caixão de Satanás" e "Desmascarado" –, esta curiosidade de primeira ordem ostenta argumentos que fascinarão, em doses similares, o espectador ocasional e o conhecedor da Sétima Arte.
Na forma, é particularmente fascinante observar como tanto foi alcançado com tão pouco, quase ao nível da obra de grande orçamento. Se cenários e guarda-roupa denotam a escassez de recursos, já as sequências de ação surgem como um pequeno deleite de planeamento, coreografia de atores e montagem.
No conteúdo, são os detalhes que falam mais alto junto a quem dedica tempo à historiografia mais "secreta" do cinema norte-americano:
O plot point da descoberta dos negativos originais e sem cortes de "Greed" (1924, de Erich von Stroheim), cuja versão integral, considerada perdida, foi elevada ao estatuto de "Santo Graal" por pesquisadores e arquivos fílmicos; a presença de William K. Everson, reputado historiador e colecionador do cinema americano, no papel do responsável de um cineclube que não olha a meios (nem despesas) para obter cópias de filmes clássicos; ou a representação de executivos de Hollywood que encaram a preservação cinematográfica apenas como meio de obter lucro, revelam um "Captain Celluloid vs. the Film Pirates" idealizado e confecionado por gente informada, com entusiasmo e gosto por questões que (sobretudo na era da sua produção) estavam longe da ordem do dia quando se falava de cinema.
Considerando estes pormenores, causa admiração que "Captain Celluloid vs. the Film Pirates" nunca tenha sido alvo de maior atenção, culto ou, sequer, redescoberta.
Poucos são os sites e blogues que o destacam, tampouco o fez a imprensa especializada, sendo apenas possível encontrar uma menção ao filme no fanzine "Private Screenings", que, na sua edição de junho de 1976, lhe reservou quatro páginas.
Nesse destaque, importa realçar um dos seus parágrafos, redigido em 1976, mas que poderia ser escrito hoje: "Com toda a publicidade e notoriedade hoje dirigidas à cópia ilegal de filmes, surpreende que Hollywood nunca tenha produzido o seu próprio filme sobre o assunto. (...) "Captain Celluloid vs. the Film Pirates" pode, facilmente, ser descrito como algo à frente do seu tempo. Concebido originalmente como sátira e tributo aos agora extintos serials exibidos nas matinés de sábado, o tema de "Captain Celluloid" tem, provavelmente, mais apelo e maior atualidade nesta era dos verdadeiros piratas internacionais de filmes."
De facto, as relações entre preservação, pirataria e exibição de cinema nunca foram tão discutidas como ao longo da última década. Talvez por isso, e atualmente, ver e estudar "Captain Celluloid vs. the Film Pirates" não só permitirá descobrir o charme que a atualidade lhe granjeou, como é passível das mais variadas dissertações em torno da licitude, (i)moralidade e aspetos económicos da cópia ilegal de um filme.
Neste contexto, não falta sequer a suprema ironia de "Captain Celluloid vs. the Film Pirates" estar disponível, de modo quase clandestino, no YouTube e, ao mesmo tempo, à venda em versão home cinema.
Pela minha parte, já estou a tratar da aquisição.