Cartaz de cinema

"O Espírito da Colmeia" por Pedro Sesinando
"Anime Nere": calabrês shakespeariano

Publicado em 17 Jan. 2022 às 19:49, por Pedro Sesinando, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: O Espírito da Colmeia)

"Anime Nere": calabrês shakespeariano

O cinema italiano trata a máfia com menor sentido de espectáculo. Sem personagens carismáticas próximas da caricatura, ou belas coreografias de violência.

Espalhada por diversas regiões de Itália, com especial proeminência a sul, a máfia surge, estima-se, nos finais do século XVIII ganhando maior relevância nos anos posteriores ao Risorgimento, a unificação dos reinos numa só nação, Itália.

Há diversas teses sobre o caldo cultural que terá levado ao aparecimento e posterior fortalecimento deste tipo de organizações, mas é seguro crer que a distância de um Estado central e correspondentes instituições, num país extenso e culturalmente diverso, com dezenas de dialectos, terá levado a um vazio de poder e a uma necessidade de organização comunitária que gerou uma espécie de estado paralelo.

Aparte considerações sobre as origens da máfia, a verdade é que este tipo de organizações prosperaram até aos dias de hoje, cruzaram fronteiras e geraram uma mitologia própria que levou a que o cinema lhe dedicasse todo um subgénero.

Foi, obviamente, Hollywood que elevou a culto este género com os sobejamente conhecidos títulos de Ford Coppola e Scorsese, "O Padrinho" e "Goodfellas", retratos estilizados de uma máfia tão dedicada a códigos de honra como a manifestações de violência extrema. Há, nos mobster movies de Hollywood, um certo tom, um enfatizar do carisma dos protagonistas que permite uma leveza no ambiente, de modo que entre a violência e a tensão se abra espaço para momentos, poder-se-ia até dizer, de comédia.

O cinema italiano parece tratar o tema de forma diferente. Não me debruçando sobre as razões que levam a esta diferença de abordagem, diria haver, no caso italiano, um menor sentido de espectáculo. De resto, talvez esta afirmação possa ser extrapolada para outros géneros.

Surgiu esta ideia ao cruzar-me com o enésimo artigo pela internet fora que se dedicava a listar os melhores filmes de sempre dedicados à máfia. Estranhamente, ou talvez não, nenhum filme italiano ganhou direito a fazer parte da lista. Decidi fazer um exercício semelhante. Não de escolher o melhor filme, tarefa tão entediante como utópica, mas de escolher um filme que seja um retrato para lá da caricatura. O filme de 2014 de Francesco Munzi, "Anime Nere" (Almas Negras) consegue-o.

A narrativa centra-se na relação dos três irmãos Carbone, oriundos da montanha calabresa, região dominada pela n'Drangheta. Luigi, o mais novo, é um grande traficante de droga. Rocco é um empresário de aparência respeitável, radicado em Milão. Luciano, o mais velho, ainda vive na montanha, atormentado pelo homicídio do pai às mãos do capo local. Cada um dos irmãos tem o seu papel particular neste retrato antropológico que Munzi faz e se revela uma tragédia de contornos shakespearianos. Os eventos precipitam-se quando Leo, filho de Luciano, perturba a paz entre as famílias da aldeia ao alvejar a casa de um protegido da máfia local. Tal acontecimento traz Luigi de volta à montanha com o intuito de mitigar os efeitos da bravata do sobrinho, mesmo sabendo que a sua presença poderá reavivar velhas rivalidades.

Munzi traça estes maus presságios com especial mestria, deixando intuir um passado sem nunca o precisar, neste caso representado pela memória do pai dos Carbone. Outra opção do autor é a preponderância da tensão sobre a violência. As cenas de violência são escassas, mas a sensação de mau agoiro é constante.

Para tal pesa bastante a fotografia, que retrata a montanha sempre sob um manto azul petróleo, mas também o realismo empregue nos cenários interiores e exteriores, com aldeias ladeadas por caminhos agrestes, pintalgadas por casas em reboco com currais improvisados. Mas o grande mérito do filme é conseguir, em pouco mais de hora e meia, captar as várias idiossincrasias referentes às dinâmicas sociais locais.

As hierarquias implícitas, o papel das mulheres, vítimas indirectas da violência, resignadas a uma posição de carpideiras de rosário na mão. A relação da aldeia com as autoridades oficiais, reduzidas a um papel de figuração. Mesmo quando no papel de vítimas, a ausência de colaboração com a polícia é total, sempre vista como intrusa (aliás, as expressões "máfia" ou "n'drangheta" não são ditas uma única vez durante todo o filme). Para além disso, o filme não se coíbe de deixar um subtexto implícito sobre o preconceito norte-sul em Itália, tão subtilmente personificado por Rocco e a sua esposa.

"Anime Nere" escolhe a intuição em detrimento da espectacularidade, caminhando inevitavelmente de tragédia em tragédia até chegar a um final que Scorsese não desdenharia. É complicado e, seguramente desnecessário, aferir da essência do filme. Já vi e revi o filme por mais que uma vez e a última tese que compro é a de que, para lá de tudo o que o filme nos oferece, "Anime Nere" trata apenas da descida ao inferno de um homem, Luciano, quando os seus piores presságios se tornam realidade.