Cartaz de cinema

"O Espírito da Colmeia" por Pedro Sesinando
"Anatomia de Uma Queda" - num universo de ambiguidades

Publicado em 17 Fev. 2024 às 15:27, por Pedro Sesinando, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: O Espírito da Colmeia)

"Anatomia de Uma Queda" - num universo de ambiguidades

O filme de Justine Triet rejeita verdades absolutas e ganha vida num espaço de estimulantes dúvidas e fragilidades.

Pouco depois de ouvir, da perspetiva de Sandra, o relato do trágico evento que ocorreu no chalet que partilhava com o marido Samuel e com Daniel, o filho de ambos, o advogado Vincent, personagem interpretada por Swann Arlaud, afasta, com uma expressão apenas, a possibilidade de que a estratégia de defesa possa basear-se na ideia de atribuir a morte de Samuel a uma terceira pessoa – "O Samuel não tinha inimigos". Dita de forma categórica, a frase oferece pouco espaço à ambiguidade, que é, paradoxalmente, o universo por onde se movimentará "Anatomia de uma Queda", o mais recente filme de Justine Trier, vencedor máximo em Cannes e título em destaque na temporada de prémios de cinema - Óscares incluídos.

A partir da queda em epígrafe da qual resulta a morte de Samuel, sucedem-se eventos que vão gravitar em redor da personagem de Sandra, não só na condição de suspeita de um possível crime, mas também na relação com o filho.

O ângulo morto em que se dá a morte de Samuel – crime, ou suicídio - permite a Trier a estruturação da história através de um processo judicial, centrado precisamente em Sandra como acusada, funcionando este como um pretexto para dissecar gradualmente a relação do casal.

Dizia Justine Trier, em maio passado, ao Cahiers du Cinéma que "existem dois tipos de 'filmes de tribunal' (procés no francês original) – os que procuram tudo resolver e os que procuram construir sobre o vazio. O meu filme é o segundo caso".

De facto, mais do que resolver um mistério, Trier sugere dissertar sobre um relacionamento que se adivinha degradado a um ponto em que a normalidade do casal se reconhece na cristalização do conflito. Para além de emprestar estrutura, as cenas em tribunal oferecem uma dicotomia interessante: essa paz podre, se por um lado entendida como um mecanismo de acomodamento e de sobrevivência do casal, quando vista à luz do tribunal ganha contornos suspeitos.

O filme avança sobre os detalhes do casamento através da pressão que o tribunal faz sobre Sandra. Esse peso institucional, com o desconforto que sente com o uso da língua francesa, causam-lhe uma óbvia inquietação que nem por isso se torna confundível com uma admissão de culpa.

A ambiguidade em que o filme vive mantém-se intacta, embora abalada, quando é apresentada, de forma talvez demasiado providencial, a gravação áudio de uma discussão do casal em que Sandra mostra um comportamento mais agressivo face à postura que tinha apresentado em tribunal.

Na cena, nuclear para o desenrolar da narrativa, Trier transporta-nos do tribunal de volta à casa, propondo uma encenação mais teatral, em que deixa campo livre para a disputa escalar enquanto a pontua com longos close ups dos intervenientes que vão esgrimindo argumentos desarrumados.

Brilhantemente escrita e interpretada, a cena expõe duas pessoas a perder o pé na relação e para quem o peso do quotidiano e a gestão do mundano – o papel de progenitor incluído - anulam o ideal de indivíduo ao qual se propuseram, com todo o ressentimento hermético que daí resulta.

Finda a discussão, Trier regressa à sala do tribunal, para de novo se apoiar no contraste oferecido pela tecnocracia própria de um processo judicial, que procura reduzir a padrões de comportamento algo de uma natureza tão caótica como um surto egomaníaco num casal em pleno estado de ebulição.

No fim de contas, "Anatomia de uma Queda" não só rejeita esse absolutismo da verdade como, não procurando respostas, convive bem com as suas dúvidas. Como refere Sandra após o veredicto, "quando ganhamos esperamos uma recompensa, mas não existe. Tudo termina, simplesmente".

Para Sandra, o final do processo não traz alívio, apenas o regresso a um quotidiano em que tem de encarar a tragédia e regenerar a relação com o filho a partir do trauma que ambos viveram. Nada que se consiga resolver com o arrematar de um martelo numa sala de audiências.